Por Anton Semiónovich Makarenko*
Em setembro de 1920, o Zavgubnarobraz me convocou à sua presença e disse:
― Olhe aqui, meu caro, ouvi dizer que você anda reclamando à beça… porque eles… do Conselho Econômico da Província… lhe cederam aquele lugar ali… para a sua escola profissional…
― E como é que eu não havia de reclamar? O caso não é só de reclamar, é caso de sentar e chorar aos uivos: que espécie de escola profissional é aquilo? Imunda, empestada de fumo! Então aquilo ali parece uma escola?
― Pois sim, já sei do que é que você gostaria: que construíssem um prédio novo, colocassem carteiras novinhas, aí então você se poria a trabalhar. Não são os prédios que importam, meu caro, o que importa é educar o homem novo, mas vocês, pedagogos, sabotam tudo: é o prédio que não lhes agrada, são as mesas que não lhes servem. O que lhes falta é aquele fogo… o fogo, sabe ― aquele… o revolucionário. Janotas, é o que vocês são.
― Eu até que não sou janota.
― Vá lá, você não é… Intelectuais sarnentos!… Eu procuro e procuro, temos uma tarefa tão grande pela frente: proliferam esses vagabundos, moleques abandonados ― não se pode mais andar pela rua, até residências eles invadem. E só o que eu ouço é, isto é assunto seu, responsabilidade do Departamento de Educação Pública… E então?
― E então, o quê?
― É isso aí: eles não querem nem saber, com quem quer que eu fale, só recebo recusa redonda ― eles vão nos esfaquear, falam. O que vocês querem é um bom escritorinho, seus livrinhos… Olhe só para você, até óculos já botou…
Desatei a rir:
― Ora vejam, agora até meus óculos atrapalham!
― O que eu quero dizer é que vocês só querem saber de leitura, mas se lhes puserem pela frente um ser humano vivo, lá vão vocês: o tal ser humano vivo vai me matar! Intelectuais!
O Zavgubnarobraz me espetava com seus olhinhos negros enfezados, e de sob o bigode nietzchiano, emitia impropérios contra toda a nossa confraria pedagógica. Só que ele não tinha razão, esse Zavgunarobraz.
― Mas ouça-me, por favor…
― “Ouça-me, ouça-me…” Ouvir o quê, para quê? O que é que você pode me dizer? Vai me dizer, ah, se fosse daquele jeito… como na América! Há pouco eu li um livreco a esse respeito, alguém me empurrou. Reformador… ou, como é mesmo, espere… isso mesmo, reformatórios. Pois bem, isso nós ainda não temos.
― Não é isso, o senhor me escute.
― Muito bem, estou escutando.
― Mesmo antes da Revolução já se sabia lidar com esses vagabundos. Já existiam as colônias para delinqüentes juvenis.
― Isso não nos serve, sabe… O que foi antes da Revolução não presta para nós.
― Certo. Isso significa que temos de criar o homem novo de maneira nova.
― De maneira nova, isso mesmo, nisso você está certo.
― Mas ninguém sabe de que jeito fazer isso.
― Nem você sabe?
― Nem eu sei.
― Pois aqui comigo, sabe… eu tenho uns caras aqui mesmo no Departamento de Educação da Província que sabem…
― Mas não querem pôr mãos à obra.
― Não querem, os safados, quanto a isso você acertou.
― Mas se eu começar alguma coisa, eles vão infernizar-me a vida, vão acabar comigo. Faça o que fizer vão dizer que não é nada disso.
― Vão mesmo, os desgraçados, nisso você está certo.
― E o senhor vai acreditar neles e não em mim.
― Não vou acreditar neles, vou dizer-lhes: e por que não começaram vocês mesmos?
― Mas, e se eu de fato meter os pés pelas mãos?
O Zavgubnarobraz deu um murro na mesa:
― Mas que conversa é essa de meter os pés pelas mãos? Meter os pés pelas mãos? Então você vai meter os pés pelas mãos, e daí, ora bolas! O que é que você quer de mim? Acha que eu não compreendo nada, ou quê? Então faça as suas trapalhadas, meta os pés pelas mãos, mas o trabalho tem de ser feito. Faça, e depois veremos. O principal é que, sabe… não se trata de alguma colônia de delinqüentes juvenis qualquer, mas, você entende, é a Educação Social… Precisamos de um homem novo assim… um que seja nosso! E você trate de construí-lo. De qualquer jeito, todos têm de aprender. Então você vai aprender, também. Até que foi bom você me dizer na cara que não sabe. Pois então está resolvido, e tudo bem.
― Mas existe um lugar? Uns prédios sempre são necessários, apesar de tudo.
― Existe, meu caro. Um lugar e tanto. Exatamente no local onde ficava a antiga colônia de delinqüentes juvenis. Não é longe ― umas seis verstás. É gostoso ali: bosques, campos ― dá para criar umas vacas…
― E gente?
― Vou já, já tirar gente do bolso, para você. Quem sabe vai querer também um automóvel?
― E dinheiro?
― Dinheiro temos. Aqui, receba.
― Ele tirou um pacote de notas da gaveta da escrivaninha.
― Cento e cinqüenta milhões. Isto dá para qualquer tipo de despesa de organização e para alguma mobília de que precise…
― E para as vacas?
― As vacas vão ter de esperar; lá não há nem vidraças. E para o ano você me prepara uma estimativa.
― Mas fica meio esquisito, assim ― não seria bom eu dar uma olhada ali, antes?
― Eu já olhei… e daí, acha que você vai enxergar mais do que eu? Vá para lá duma vez e pronto!
― Pois muito bem ― disse eu, aliviado, porque naquele momento nada me parecia mais assustador do que o recinto do Conselho Econômico da Província.
― Assim é que se fala ― disse Zavgubnarobraz. ― Vá em frente! A causa é sagrada.
– – –
*Makarenko (http://revistaescola.abril.com.br/historia/pratica-pedagogica/educar-coletivo-423223.shtml), nascido na Ucrânia em 1 de março de 1888, é um dos grandes educadores do século XX. Como afirma Tatiana Belinky, na apresentação do livro Poema Pedagógico, do qual ela é também tradutora: a “grande epopéia educacional” de Makarenko “começou de 1920 em diante, quando, durante 16 anos, dirigiu as instituições educacionais “correcionais” para crianças e adolescentes abandonados, que o tornaram famoso: a Colônia Maxím Gorki (em Poltava, 1920 a 1928), e a Comuna F. M. Dzerjinsk (em Khárkov, 1927 a 1935)“. Poema Pedagógico é um livro que vale a pena ser lido e relido (e um dos livros que eu vivo relendo), tanto pelo seu valor literário como pelo seu valor histórico: com muita sensibilidade e riqueza estética, Makarenko relata, através de verdadeiros contos extraídos da experiência concreta, a construção da educação socialista, no contexto da então recente Revolução de Outubro. “Conversa com Zavgubnarobraz…” é o primeiro “capítulo”, ou “conto”, do primeiro volume desse belo livro.
Bibliografia: MAKARENKO, A.S. Poema Pedagógico. – Trad. do russo e apresentação: Tatiana Belinky. – 2 ed. – SP: Brasiliense, 1987.