O constrangedor “Cândido”, de Voltaire

Já afirmei, em algum momento, que “Viver para Contar”, de Gabriel García Márquez, foi o primeiro livro que eu tive peso na consciência ao ler, por motivos de foro íntimo que obviamente não publicarei nem sob ameaça da fogueira da Santa (diabólica) Inquisição, ou da nefasta polícia política de José Serra, o Zé Alagão. Já o “Cândido”, de Voltaire, foi responsável por alguns dos episódios mais constrangedores que experimentei ao ler um livro.

À época, andava muito de ônibus e sempre carregava comigo nem que fosse bula de remédio para passar o tempo entre a longa espera dos coletivos e o prolongado tempo da viagem porque, como sabemos, via de regra o trânsito vive congestionado e, além de enlatados e espremidos como sardinhas, vamos menos que à velocidade das galinhas.
 
Ocorreu-me que, numa dessas viagens, coletivo lotado e “Cândido” à mão, e já advertido por um amigo de que seria uma leitura muito interessante, passei às vias de fato. Logo nas primeiras páginas, tive um incontrolável acesso de riso. Esforçava-me por manter senão a etiqueta, ao menos a compostura, mas era inútil tapar a boca, posto que os olhos lacrimejavam de tanto que eu ria, a ponto de as pessoas voltarem-se para mim e cochicharem algo entre elas.
 
Fato semelhante a este, mas menos intenso, se deu certa feita em que eu lia um conto de Carlos Drummond de Andrade, também num ônibus, e carregava material escolar de um guri (quem lê Drummond, conhece a veia irônica e humorística deste autor, e  o conto era justamente acerca de uma situação supostamente vivenciada por ele, em um bonde, ao se oferecer para carregar o material de um escolar).
 
Não sei se hoje eu leria com os mesmos olhos e com a mesma predisposição para a “risotonia aguda gargalhal”* (até porque a ocasião é diferente), ou se outras pessoas teriam reação parecida, mas recomendo sempre este livro, claro! Na apresentação do livro, Nelson Jahr Garcia nós dá bons motivos para ler “Cândido”. Veja:
 

     “Cândido” é uma das obras mais conhecidas de Voltaire.
     O texto contrapõe ingenuidade e esperteza, desprendimento e ganância, caridade e egoísmo, delicadeza e violência, amor e ódio. Tudo isso mesclado com discussões filosóficas sobre causas e efeitos, razão suficiente, ética.
     Como sempre Voltaire expõe suas concepções com fina ironia, sem abandonar o sarcasmo de quando em vez. O romance, em todos e cada um dos seus parágrafos, caracteriza-se como uma sátira às idéias de Leibnitz.
     Leibnitz afirmara, pelo menos assim entendeu Voltaire, que o mundo é o melhor possível, que Deus não poderia ter construído outro e que tudo corria às mil maravilhas.
     Voltaire não podia partilhar dessa mesma visão otimista, suas idéias tinham resultado em prisões e perseguições a tal ponto que, por volta de 1753, já não podia fixar-se, sem risco, em lugar algum da Europa.
     Cândido foi expulso de onde morava, foi preso e torturado, perdeu sua amada, seus melhores amigos; em todos os casos com requintes de crueldade. Mas a cada um desses fatos, meditava sobre como explicar o melhor dos mundos possíveis, sempre com deboche mais ou menos sutil.
     Como é peculiar a todos os seus trabalhos,o filósofo também criticou acidamente os costumes, a cultura, as artes.
     Sobre as relações entre sexos, uma passagem merece ser mencionada:

     “Um dia, em que passeava nas proximidades do castelo, pelo pequeno bosque a que chamavam parque, Cunegundes viu entre as moitas o doutor Pangloss que estava dando uma lição de física experimental à camareira de sua mãe, moreninha muito bonita e dócil. Como a senhorita Cunegundes tivesse grande inclinação para as ciências, observou, sem respirar, as repetidas experiências de que foi testemunha; viu com toda a clareza a razão suficiente do doutor, os efeitos e as causas, e regressou toda agitada e pensativa, cheia do desejo de se tornar sábia, e pensando que bem poderia ela ser a razão suficiente do jovem Cândido, o qual também podia ser a sua.”

     Nem mesmo as falcatruas das manufaturas européias ficaram esquecidas:

     “…levou-o para casa, limpou-o, deu-lhe pão e cerveja, presenteou-o com dois florins, e até quis ensinar-lhe a trabalhar na sua manufatura de tecidos da Pérsia fabricados na Holanda.”

     Sugestiva é a menção sobre a recompensa divina para o mal menor:

     “Tínhamos um imame muito devoto e compassivo, que lhes pregou um belo sermão, persuadindo-os a que não nos matassem.
     — Cortai – disse ele – apenas uma nádega a cada uma dessas damas, e com isso vos regalareis. Se for necessário mais, tereis outro tanto daqui a alguns dias. Deus recompensará tão caridosa ação, e sereis socorridos.”

     Não faltou a referência à relação entre exploradores e explorados, e à hipocrisia dos poderosos.

     “Já estiveste então no Paraguai? – indagou Cândido.
     — É verdade. Servi de fâmulo no colégio de Assunção, e conheço o governo dos Padres como conheço as ruas de Cádiz. É uma coisa admirável esse governo. O reino já tem mais de trezentas léguas de diâmetro; é dividido em trinta províncias. Os padres ali têm tudo, e o povo nada; é a obra prima da razão e da justiça. Quanto a mim, não conheço nada mais divino do que os Padres, que aqui fazem guerra ao rei de Espanha e ao rei de Portugal, e que na Europa confessam esses reis; que aqui matam espanhóis e em Madrid os mandam para o céu: isto me encanta.”

     E com que graça se refere à simplicidade da riqueza e do luxo:

     “Entraram numa casa muito simples, pois a porta era apenas de prata e as salas modestamente revestidas de ouro, mas tudo trabalhado com tanto gosto que nada ficavam a dever aos mais ricos lambris. A antecâmara, na verdade, era incrustada somente de esmeraldas e rubis; mas a harmonia do conjunto compensava de sobra essa extrema simplicidade.”

     O respeitabilíssimo Homero não escapou das farpas:

     “Cândido, ao ver um Homero magnificamente encadernado, elogiou o ilustríssimo quanto ao seu bom gosto.
     — Eis – disse ele – um livro que fazia as delícias do grande Pangloss, o maior filósofo da Alemanha.
     — Pois não faz as minhas – disse friamente Pococurante. – Fizeram-me acreditar outrora que eu sentia prazer em lê-lo; mas essa repetição contínua de combates que todos se assemelham, esses deuses que agem sempre para nada fazer de decisivo, essa Helena que é o motivo da guerra e que mal entra na peça; essa Tróia que cercam e não tomam, tudo isso me causava um mortal aborrecimento. Perguntei a eruditos se eles se aborreciam tanto quanto eu nessa leitura. Os que eram sinceros confessaram-me que o livro lhes tombava das mãos, mas que sempre era preciso tê-lo na biblioteca, como um monumento da Antigüidade, é como essas moedas enferrujadas que não podem circular.”

     Foi nesse romance que Voltaire escreveu uma de suas mais célebres frases. Após ouvir uma breve dissertação sobre o perigo das grandezas, que todos os acontecimentos estavam devidamente encadeados no melhor dos mundos possíveis, que todo o sofrimento de Cândido acabara por reverter em benefícios, Cândido, candidamente, respondeu:

     “— Tudo isso está bem dito… mas devemos cultivar nosso jardim.”

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* Peguei esta expressão (“risotonia aguda gargalhal”) emprestada de um conto chamado “O Servidor Público”, de Pita Neiva, que coincidentemente encontrei agora pouco na internet. É curtinho, mas bem elaborado. Leia você mesmo: http://66.228.120.252/contossurreais/1488832  
 
P.s: entra no sítio Dominio Público e faz o download do “Cândido”.
 
P.s. de novo: sobre o otimismo, leia também o interessante artigo “Esse Nosso Cérebro Otimista”, de autoria do Professor Roberto Lent, em http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/bilhoes-de-neuronios/este-nosso-cerebro-otimista

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