Alfabetização e letramento: um problema mal colocado

Por Moacir Gadotti*

A alfabetização tem sido entendida tradicionalmente como um processo de  ensinar e aprender a ler e escrever, portanto, alfabetizado é aquele que lê e escreve.

O conceito de alfabetização para Paulo Freire tem um significado mais abrangente, na medida em que vai além do domínio do código escrito, pois, enquanto prática discursiva, “possibilita uma leitura crítica da realidade, constitui-se como um importante instrumento de resgate da cidadania e reforça o engajamento do cidadão nos movimentos sociais que lutam pela melhoria da qualidade de vida e pela transformação social” (Paulo Freire,Educação na cidade, 1991, p. 68). Ele defendia a idéia de que a leitura do mundo precede a leitura da palavra, fundamentando-se na antropologia: o ser humano, muito antes de inventar códigos lingüísticos, já lia o seu mundo.

O termo letramento tem sido utilizado atualmente por alguns estudiosos para designar o processo de desenvolvimento das habilidades de leitura e de escrita nas práticas sociais e profissionais. Por que esse termo surgiu? Segundo alguns autores, a explicação está nas novas demandas da sociedade, cada vez mais centrada na escrita, que exigem adaptabilidade às transformações que ocorrem em ritmo acelerado, atualização constante, flexibilidade e mobilidade para ocupar novos postos de trabalho.

Os defensores do termo “letramento” insistem que ele é mais amplo do que a alfabetização ou que eles são equivalentes. Emília Ferreiro nega-se a aceitar esse “retrocesso conceitual”. Em vez de se curvar a esse novo anglicismo, ela traduz literacy por “cultura escrita”, e não por letramento. Mas não se trata só de um retrocesso conceitual. Trata-se, lamentavelmente, de uma tentativa de esvaziar o caráter político da educação e da alfabetização, uma armadilha na qual muitos educadores e educadoras hoje estão caindo, atraídos e atraídas por uma argumentação que, à primeira vista, parece consistente.

Não se trata só de palavras, de brigar por terminologias. Trata-se de uma posição ideológica que busca negar toda a tradição freiriana. A palavra alfabetização tem um peso, uma tradição, no contexto do paradigma da educação popular que é a maior contribuição da América Latina à história universal das idéias pedagógicas.

O uso do termo “letramento” como alfabetização é uma forma de contrapor-se ideologicamente à essa tradição, reduzindo à alfabetização à “lecto-escritura”, como se diz em espanhol. 

A alfabetização não pode ser reduzida a uma tecnologia ou técnica de leitura e de escrita. Ser uma pessoa letrada não significa ser alfabetizada, no sentido que Paulo Freire dava ao termo. O termo “alfabetização” não perdeu sua força significativa diante da emergência dos novos usos da língua escrita, como argumentam alguns. Nem o termo inglês literacy (letramento) traduz melhor as práticas sociais que envolvem a leitura e a escrita.

Já estão adotando o termo “letramento digital”. Daqui a pouco, deveremos nos referir às alfabetizadoras como letramentadoras? Além do equívoco conceitual, sonoramente seria uma lástima! Emília Ferreiro tem razão. É um retrocesso.

(*) Moacir Gadotti, 63, é professor titular da Universidade de São Paulo e  Diretor do Instituto Paulo Freire

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s