Sobre bullyng, Vygotsky e aposentadoria…

Ainda esta semana recebi um e-mail da amiga Professora Geanete, que trabalhou comigo na EMEB Viriato Correia. Com uma vida dedicada ao magistério público em sala de aula e militância na educação, está na porta da aposentadoria, cuja data tem dia marcado: 2 de julho (dois dias a mais e comemoraria a sua “alforria” com a independência dos Estados Unidos).

Em sua mensagem, que eu tomei a liberdade de publicar neste Blog, Geanete trata de temas pedregosos: bullyng, direitos da infância e adolescência, desigualdades entre escolas públicas e privadas e abordagem sócio-cultural.

Aquilo tudo me inquietou, não só pelo conteúdo, como pela situação toda, pela lucidez e preocupação de quem poderia usar a simples justificativa de que está “de saída” para dizer que não se importa mais com a educação, que não é mais problema seu, e sim dos que ficam…

Afinal, não é este o discurso de muitos de nós, que nem chegamos à metade do caminho, ou mal estamos perto?!… Discursos acalentadores do status quo, tais como: “Eu já fiz a minha parte, agora deixo para os que estão chegando”; ou então (aos que estão chegando): “Você sonha assim porque está começando, vamos ver daqui a cinco anos se continuará pensando desta maneira”…

Bem, pelo visto, os cinco anos da Professora Geanete ainda não chegaram! E desejo que os meus também não cheguem, pois, lembrando Paulo Freire, que aqui vai citado livremente: ai do educador que perde a sua capacidade de sonhar!

Diante do conteúdo e do contexto, aquilo tudo me inquietou; e eu me conheço muito bem a ponto de saber que enquanto não escrevesse algo, a minha mente ficaria soltando faíscazinhas e fumacinhas de curto-circuito.

No entanto, cheio de trabalhos e leituras mais do que atrasadas, tentei resistir o mais que pude. E o máximo que consegui foi até ontem, sexta-feira, quando respondi a mensagem da Professora Geanete, inicialmente lamentando-me por ter chegado numa situação em que não tenho conseguido ler e escrever nada.

Pelos devaneios proferidos por mim, e em comemoração à aposentadoria da amiga, e fazendo jus aos tempos “biguebrodeanos”, torno pública a mensagem que lhe encaminhei, pois então:

“Oi, Geanete! Tudo bem?

Então, aposentou ou não? Gostei da ideia de você ter mais tempo para ler… Gostei porque invejo, com uma inveja boa, esse tempo, sabe… Entrei naquele curso de Pós da USP, em Educação Infantil, e no olho do furacão na Comissão da Educação, e cheguei num ponto em que não consigo ler nem escrever nada – deve ser estafa mental, acho… Tanto por ler e não tenho conseguido me concentrar, mesmo quando sobra tempo…

Gostei também de suas reflexões sobre essa prática terrível que é o bullyng que, a bem dizer, fora o termo (bullyng), não tem nenhuma novidade na nossa terrinha tupiniquim, porque sempre existiu em nossas escolas.

Talvez o diferencial hoje esteja na superexposição gerada pelos meios de comunicação em massa, pelo acesso liberal e certo controle individual (e efetivo controle corporativo, privado) dos meios de comunicação, principalmente a net, em que qualquer um, a qualquer tempo, sem qualquer moderação, posta seus textos, suas fotos e seus vídeos possibilitando a centenas, senão milhares, de outras pessoas o acesso aos conteúdos, inclusive às práticas de bullyng – aliás, pipocam na tv, nos jornais sensacionalistas, vídeos registrados em celulares de agressões sofridas e realizadas.

Não defendo, porém, quaisquer formas de censuras; mas por que não o controle social da mídia como forma de cada um, cada grupo ou corporação, se responsabilizar por aquilo que propaga ou reproduz?

Que tempos são estes em que a miséria humana, a pobreza espiritual, é servida em doses cavalares como troféu de algum indivíduo ou grupo pelo puro prazer da atitude e pela busca da autoafirmação?

Tempos de continuidade do capitalismo, do homem primata, como cantava os Titãs. Tempos da busca do lucro fácil, do enriquecimento veloz, não importando se ilícito, da vantagem pessoal acima do bem coletivo, da superexploração do ser humano pelo outro ser humano. Tempos que, ao invés de nos confrontarmos com a perversidade dos senhores do mundo, dos capitalistas, que em nome da manutenção de suas altas taxas de lucros condenam milhares de pessoas à miséria material e espiritual… Enfim, ao invés de nos confrontarmos com aqueles, questionarmos seus poderes e suas usuras, os admiramos e os invejamos, e sonhamos com o dia em que ocuparemos seus postos…

Afinal, não seria o bullyng uma forma de representação social dessa lógica perversa que o nosso modo de vida (de produção) propaga? Isto é, a primazia do indivíduo sobre o coletivo e dos interesses privados sobre os interesses públicos, a submissão daqueles considerados fora do padrão (e que padrões são esses???) por aqueles que se consideram seres superiores, que se consideram em conformidade com os padrões ou (não sei se pior) que querem impor seus padrões e suas falsas verdades absolutas aos demais…

Em certa medida, a abordagem sócio-cultural, que tem sua origem e sua base no marxismo, foi tomada de assalto pelos neoliberais e pela nova direita (inclusive a neopetista) de plantão, que passaram a fazer uso de uma linguagem pretensamente vygotskiniana, se assim podemos chamá-la, esvaziando-a, porém, de todo o seu conteúdo marxista e, portanto, revolucionário.

Mais ou menos a mesma coisa que fizeram com a imagem de Ernesto Guevara de La Serna, transformado em objeto de consumo, figurando desde estampas de camisetas vendidas em grandes magazines a charutos e bebidas. O capitalismo é assim: assimila em suas entranhas o oposto, transforma-o em mercadoria, e esvazia o seu conteúdo crítico para torná-lo inofensivo.

E é assim também que o capitalismo, sob o pretexto de um suposto jornalismo, transforma em objeto de consumo e, portanto, de lucratividade, as práticas de bulling e as demais cenas de violência do último minuto, banalizando-as e “naturalizando-as”, criando em nós uma camada cada vez mais impenetrável de insensibilidade frente às desgraças do mundo e ao sofrimento humano.

A despeito do que dizia o Che¹, estamos cada vez menos enternecidos e cada vez mais endurecidos, embrutecidos, homens e mulheres de pedras, às vezes lascadas, e na maioria das vezes hipócrita e falsamente polidas.

Não penso que devemos deixar de lado os pressupostos de Vygotsky, as suas contribuições e a sua abordagem histórico-materialista e dialética. Pelo contrário, há que se reafirmá-las radicalmente para confrontá-las com as posições neoliberais na educação.

Creio que é Michael Lowi que argumenta que uma das grandes lutas do século XXI é em torno do embate da simbologia, das idéias, e entendo que ele se referia justamente à necessidade de expropriar da burguesia a linguagem que nos foi saqueada. Assim, devemos reafirmar e retomar o conteúdo revolucionário que foi esvaziado de nosso campo de atuação, a educação².

Mas como fazer isso se mantendo as mesmas condições materiais de existência? Como fazer isso quando em conjunto nos resignamos a reproduzir no cotidiano escolar a lógica dessa máquina do mundo, dessa roda vida que nos rouba tanto os sonhos que tivemos como a nossa capacidade de sonhar?

Creio que, para começar, mantendo essa teimosia que é toda sua; teimosia que lhe faz, no limiar de sua aposentadoria, ainda se preocupar com os rumos da educação, como quem dissesse “a luta continua, companheiros” quando até mesmo o autor desta célebre frase esqueceu o seu conteúdo político e contestador e resigna-se – ele, seus sucessores, apoiadores e aliados – a amortizar a luta de classes sob o jargão da aliança capital e trabalho (quiçá sob os auspícios de algumas benesses que desconhecemos), como se de tal aliança resultasse o fim da exploração do ser humano ou, pelo menos, benefícios mútuos e igualitários.

Que a sua aposentadoria lhe traga tempo para muitas leituras, tempo para muito e merecido descanso e mais tempo ainda para as inquietações que nos fazem indagar, indagações essas que são os “daemons” socráticos que nos impulsionam à vida e pela vida.

Um forte e afetuoso abraço deste seu amigo,

Marcelo”

“Pe-ésses”:

Ps¹: Aparentemente com duplo sentido, pois Che tinha fama de galanteador (obviamente o sentido a que me refiro aqui é estritamente político): “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”.

Ps²: Eu deveria ter escrito: “Assim, devemos reafirmar e retomar o já pouco conteúdo revolucionário que foi esvaziado de nosso campo de atuação, a educação.

Ps2: As primeiras frases da resposta da Professora foi: “Puxa! ainda bem que não está conseguindo escrever!!! rsss Obrigada!

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