A “Família Doriana”

Nota da Pedra Lascada: Este texto, já com algumas alterações, é fragmento de trabalho referente ao curso Família, Comunidade e Projeto Pedagógico na Educação Infantil, da Pós em Ed. Infantil. [M.S.]

***

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
– Psiu… Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro… que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

[Carlos Drummond de Andrade¹]

***

Longe de intencionar tecer crítica literária, ou desvelar o quão autobiográfico é este poema e, assim, tentar mensurar em que momento, e até qual limite, o poeta fala realmente de uma  infância vivida ou se coloca enquanto personagem narrador de uma história fictícia, baseada ou não em fatos reais, “Infância” nos remete a um modelo de família do tipo nuclear burguês, ou, em outras palavras, a “família nuclear conjugal moderna – quer dizer, pai, mãe e filhos” (SZYMANSKI, 2001, p. 13).

Se fôssemos traçar, também, um perfil sócio-econômico desta família, ainda que desconhecêssemos totalmente a biografia do autor, vários elementos neste poema nos levariam a afirmar que se trata de uma família em condições econômicas privilegiadas: o pai cavalgando enquanto a criança ficava lendo livro; a mãe cosendo enquanto a empregada, “que aprendeu a ninar nos longes da senzala”, preparava o café…

Mais do que isso, as repetições (pai montado a cavalo, mãe cosendo, empregada que chama para o “café preto que nem preta velha, café preto, café bom”), além de reforçar a idéia de uma vida que segue seu curso mansamente, sem sobressaltos, num clima de ordem e de harmonia, reiteram papéis socialmente atribuídos em conformidade com um dado modo de produção – o capitalista: o pai, literalmente representado como uma figura hierarquicamente superior, distante e vendo o mundo do alto, acima do nível do chão; a mãe, entretendo-se em um passatempo e sendo observadora atenta dos acontecimentos do lar (tão vigilante e cuidadosa – imagem culturalmente construída, e exigida, das mães – que, enquanto cose, percebe um mosquito pousando no berço); a criança igualmente aproveitando seu tempo ocioso, e não ajudando na lida, como o fazem comumente as crianças das famílias pobres; a empregada desprovida de características e qualidades pessoais autônomas, posto que suas características (“preta”) e suas qualidades (“boa”) são associadas com o objeto e o produto de seus afazeres domésticos, como se o narrador, intencionalmente ou não, dissesse do pai: vale pelo que tem; da mãe: vale pelo que é; da empregada: vale pelo que faz.

Obviamente poetas não são anjos, não são intocáveis nem politicamente neutros. Porém, advertimos que, com esta interpretação possível, não intencionamos estabelecer um tribunal ideológico a fim de absolver ou condenar moralmente Carlos Drummond de Andrade.

Ressaltamos, isto sim, o mérito do poeta em retratar tão bem um modelo de família historicamente construído, e que insiste em permanecer em nosso imaginário como o de uma família estruturada, modelo ambicionado no discurso de muitos educadores que, ao analisarem as razões do fracasso escolar, geralmente o atribuem, entre outras causas predominantemente externas, à suposta desestruturação familiar, sem levarem em conta, contudo, que “família desestruturada não quer dizer mais do que uma família que se estrutura de forma diferente do modelo de família nuclear burguês” (SZYMANSKI, 2001, p. 68).

Aliás, aproveitando as analogias possibilitadas pelo poema de Drummond, o discurso presente em “Infância” só nos faz reafirmar que

               “… a família se delimita simbolicamente, a partir de um discurso sobre si própria, que opera como um discurso oficial. Embora culturalmente instituído, ele comporta uma singularidade. Cada família constrói sua própria história, ou seu próprio mito, entendido como uma formulação discursiva em que se expressam o significado e a explicação da realidade vivida, com base nos elementos objetiva e subjetivamente acessíveis aos indivíduos na cultura em que vivem. Os mitos familiares, expressos nas histórias contadas, cumprem a função de imprimir a marca da família, herança a ser perpetuada”. (SARTI, 2004, p. 14)

Além disso, Heloísa Szymanski (2001), em estudo sobre a relação família e escola, ao analisar os discursos sobre o conceito de família, concluiu que a família que se pensa é bem diferente da família que se vive:

“… as pessoas, sempre que falavam da vida da sua família, pareciam estar a compará-la com alguma ‘outra’ família. Esta parecia ser a certa, a boa, a desejável e a família que se vivia era a ‘diferente’.

Em alguns casos, aquela outra família – que chamaremos daqui para diante  de ‘pensada’ – pedia uma organização que era impossível dentro das circunstâncias vividas”. (…)”

“Em outros casos, a família que se vivia era vista como um desvio de um modo ‘estabelecido’ de se viver”. (p. 20-21)

Certamente, a família retratada por Drummond, a família de sua infância longínqua e romantizada, tem muito de “família pensada” e menos de “família vivida”. Entretanto, o poeta não está sozinho, pois é muito mais a partir de um conceito idealizado de família do que a partir do reconhecimento do caráter plural de constituição familiar – e de construção de identidades – que, muitas vezes, lidamos com as famílias usuárias da escola e com os educandos.

Não à toa, utilizamos como subtítulo deste artigo, a popular expressão “Família Doriana”,
haja vista que

as experiências vividas e simbolizadas na família têm como referência definições cristalizadas de família socialmente instituídas pelos dispositivos jurídicos, médicos, psicológicos, religiosos e pedagógicos, enfim, os dispositivos disciplinares existentes em nossa sociedade, que têm nos meios de comunicação um veículo fundamental, além de suas instituições específicas. Essas referências constituem os “modelos” do que é e deve ser a família, fortemente ancorados numa visão de família como uma unidade biológica constituída segundo as leis da ‘natureza’”. (SARTI, 2004, p.16)

Por isso mesmo que Szymanski (2001, p. 34) recomenda, entre outras coisas, que aqueles que pretendem trabalhar com famílias devem, primeiramente, refletir criticamente sobre as próprias experiências com sua família e procurar “conhecer os valores, crenças e mitos que foram se desenvolvendo a respeito do que é família.”

Exatamente aí em que nós educadores nos situamos, queiramos ou não, pois, no cotidiano de nossas práticas profissionais, nos deparamos com as múltiplas estruturas familiares, que se confrontam com os modelos cristalizados e preconcebidos do que é ser família; modelos que, por sua vez, também geralmente não correspondem sequer à nossas próprias estruturas familiares vividas.

O desenvolvimento de práticas educativas emancipatórias, ou minimamente éticas, depende do reconhecimento e do respeito a essa pluralidade, além de muita autovigilância, pois “há uma tendência a projetar a família com a qual nos identificamos – como idealização ou como realidade vivida – no que é ou deve ser a família, o que impede de olhar e ver o que se passa a partir de outros pontos de vista” (SARTI, 2004, p.16).

Por outro lado, as dificuldades em construir projetos pedagógicos que contribuam para a construção e consolidação de sociedades verdadeiramente democráticas relacionam-se com as nossas dificuldades em superar visões idealistas de educação, de família e de sociedade, dificuldades essas reforçadas pelos muitos preconceitos que permeiam as relações humanas, tanto no sentido do olhar das famílias para a escola, sobre o que é e quem pode ser educador, por exemplo, ou o seu papel, quanto no sentido do olhar da escola, na figura de seus profissionais, para as famílias (igualmente sobre o que é uma família, quem a constitui, seu papel etc).

Entender estes mecanismos e reconhecer suas variáveis pode nos dar pistas para os caminhos necessários a serem trilhados no sentido de uma educação humanizadora.

***

¹Carlos Drummond de Andrade é considerado um dos maiores poetas brasileiros. Particularmente, sou suspeito para falar a seu favor, porque desde que o descobri, lá pelos meus 14 anos, foi paixão à primeira vista. Infelizmente, a data de hoje (17 de agosto), é o vigésimo quarto ano de sua morte. O Poeta bem que merecia mais que uma nota no rodapé de um lascado indivíduo da Pedra Lascada, mas não sou tão dígno a esse ponto… Viva o Mineirinho!!!

Um comentário em “A “Família Doriana”

  1. Caro Marcelo, onde, no poema, diz que é a mãe que percebe o mosquito??? O narrador diz que a mãe olha para o berço, e que o mosquito está lá, porque é ele quem repara o inseto no berço, enquanto a mãe, ainda que docilmente, o repreende para que não acorde o irmão. Ou vc teria imaginado que a mãe estaria repreendendo o mosquisto?! rs Ass: sua consciência…

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