Resenha: O Corpo Feminino em Revistas (Saulo Ferro)

Por Saulo Ferro

FIGUEIREDO,Débora de Carvalho; NASCIMENTO,Fábio Santiago; RODRIGUES,Maria Eduarda. Discurso, culto ao corpo e identidade: representações do corpo feminino em revistas brasileiras. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 17, n. 1, p. 67-87, jan./abr. 2017.

REFERÊNCIAS

ALBERONI,Francesco. O Erotismo: Fantasias e Realidades do Amor e Sedução. Garzanti Editore s.p.a., 1986.


O artigo “Discurso, culto ao corpo e identidade: representações do corpo feminino nas revistas brasileiras”,  produzido como material de extensão do projeto de pesquisa “A representação das identidades corporais no discurso midiático: o papel do culto ao corpo na construção das identidades femininas na modernidade tardia”, apresenta como o mercado brasileiro padroniza, através do consumismo e da teoria cultural, a estética feminina através de gatilhos psicológicos, sociais e monetários.

Tendo sua produção o foco central na construção da estética feminina afetada pelas mudanças sociais e tecnológicas dos tempos pós-modernos, e como isso ocorre diariamente pelas fragmentações de identidades visuais e sociais apresentadas pela mídia, que por muitas vezes levantam modelos alienados, temporários e quase inalcançáveis.

O objetivo do artigo científico é interpretar e explicar como os novos modelos de corporeidade apresentados na mídia do terceiro milênio, as técnicas disciplinares utilizadas para construir esses modelos corporais, e consequentemente as novas possibilidades de construção identitária abertas para os indivíduos, estão ligados ao discurso promocional (venda de ideais através de propagandas, técnica usada pela teoria cultural), ao fenômeno da comodificação do discurso e, principalmente, à cultura de consumo (indústria cultural). (Discurso, culto ao corpo e identidade: representações do corpo feminino em revistas brasileiras.2017.p.68)

A equipe do artigo optou por retirar grande parte da história do gênero revista para poder trabalhar apenas com o período contemporâneo no Brasil, período em que estamos e onde o mercado heteronormativo cobiça o corpo feminino, impondo certos modelos corporais como padrões e retendo outros.

A obra ainda reflete o “contrato social” estabelecido pela busca do padrão perfeito, e que por mais que a mulher se esforce praticando atividades físicas ou utilizando meios espontâneos, ela não deve indagar e apenas aceitar o que o mercado apresenta como o certo para consumo, o que demonstra uma referência à teoria da agulha hipodérmica no setor estético brasileiro.

Esta busca pela beleza visual não é novidade em nenhum período da história humana, e desde da Grécia antiga há vestígios de normatização de certos padrões e ridicularização de outros, tanto feminino quanto masculino.

A relação de consumo da imagem (beleza visual), e como isso afeta o culto ao corpo em geral de cada gênero biológico, é debatida pelo sociólogo italiano Francesco Alberoni que, em seu livro O Erotismo, relata:

O erotismo se apresenta sob o signo da diferença. Uma diferença dramática, violenta, exagerada e misteriosa. Essa ideia emerge quando observamos com atenção uma banca de jornais. Em um canto, um pouco isolada e meio escondida, encontramos a pornografia hard-core. Ao lado, um pouco mais visíveis, os livros pornográficos da Olympia Press. Ainda mais à vista, revistas eróticas como Playboy e Penthouse. É o canto dedicado ao erotismo masculino. São publicações que as mulheres não compram, não olham e com relação às quais experimentam um certo sentimento de desconforto, desprezo e até de irritação.

 Do lado oposto da banca encontramos as publicações compradas e lidas exclusivamente por mulheres.  A literatura água-com-açúcar, os romances da editora Harlequin, os livros dos Dellys da vida, de Liala ou de Cartland. O imaginário feminino cria outros mitos, alimenta-se de outras imagens e de outros acontecimentos fantásticos. O setor do erotismo feminino se estende também às revistas que trazem o “Correio sentimental”, as histórias amorosas dos artistas, seções de moda, de beleza, de ginástica, de decoração, colunas sociais. O interesse das mulheres pelos cremes de beleza, pelos perfumes, sedas, peles, tem um significado mais erótico que social. (ALBERONI.O Erotismo.1986.p.6)

Ou seja, desde a sua criação, a revista tem despertado o interesse do culto ao corpo ao reviver a busca pela beleza perfeita em que se baseiam diversos mitos gregos, e seria isso o quê o artigo tenta demonstrar através da análise de revistas brasileiras que possuem no público feminino os seus leitores primordiais.

O artigo ainda discute como construímos a imagem que queremos ser e como, na maioria das vezes, entramos em conflito com o desejo da sociedade, e abordamos o consumismo como resultado da teoria cultural que aciona estímulos sociais na busca da perfeição e inclusão na sociedade, nos tornando agentes sociais.

O que demonstra a eficácia da indústria cultural nos estereótipos rotineiros, sendo um sistema harmonioso onde setores culturais como: rádio, cinema, literatura e vários outros setores do entretenimento se unem de forma recíproca, projetando uma imagem idealista baseada naquilo que a massa é atraída, de forma agradável e confortável. Mudando quase nada ao longo do tempo, e sempre vendendo algo modal, que significa moda, algo que vai e vem de acordo com a ideologia social de um determinado período que gera lucro para a indústria em geral. (HORKHEIMER, Adorno.1947)

Essa relação de busca do indivíduo próprio por uma imagem social, aceitando como parte de se o que a indústria cultural vende é abordada no 3 capítulo do artigo:

Os conceitos de identidade e de ‘eu’ tendem a estar associados a um foco interacional no processo de construção de identidades individuais ou coletivas através do discurso. Como pano de fundo para esses conceitos, temos as teorias sociais que explicam a pós-modernidade como um período de identidades múltiplas, mutáveis e fragmentadas. Nessa perspectiva, a criação de identidades é um dos temas mais correntes nas sociedades contemporâneas, e um dos principais focos do fenômeno contemporâneo da reflexividade. (Discurso, culto ao corpo e identidade: representações do corpo feminino em revistas brasileiras.2017.p.70)

 Outro ponto apresentado pelo artigo foi que a construção da identidade pessoal e coletiva/social, são  mecanismos de interação pós-modernos, que usamos não apenas para interações casuais, mas para tomada de decisões, avaliações e necessidades que designam nossa posição social. E por isso o indivíduo se perde na construção do seu ‘eu’, pois estamos todos engajados na “política da vida”, definida por Giddens (1991, p. 155-156) como “engajamentos radicais que procuram incrementar as possibilidades de uma vida realizada e satisfatória para todos e para qual não existem ‘outros’ (envolvendo decisivamente uma “ética do pessoal” e a política referida a estilos de vida)”.

O que torna o indivíduo um ser reflexivo e analista com seus passos, e raramente se sente satisfeito com a sua caminhada. Vale lembrar que essa reflexividade não nos torna necessariamente capazes de conectar nossos movimentos e ‘escolhas’ aos seus resultados e consequências, o  que contextualiza vários níveis de consciência crítica entre os indivíduos que segmentam a massa.

Giddens (1991) argumenta que se tornar um agente social competente – isto é, ser capaz de participar em pé de igualdade com os demais na produção e reprodução de relações sociais – requer um monitoramento constante, e bem-sucedido, do rosto e do corpo. Essa competência social implica não apenas ser capaz de controlar o corpo de forma constante e cuidadosa em todas as interações sociais, mas ser visto pelos demais como alguém capaz de exercer esse controle. O controle rotinizado do corpo permite que os indivíduos criem para si um casulo protetor nas interações sociais diárias. (Discurso, culto ao corpo e identidade: representações do corpo feminino em revistas brasileiras.2017.p.70)

O artigo então apresenta o que o sociólogo Alberoni recita em O Erotismo, mas focando na identidade feminina como um agente social ou influenciador mais do que competente, o que me remete ao mito de Eros e Psique, tal mito grego, conhecido como o mito fundador da psicanálise, trata da princesa Psiquê que, por ter uma aparência bela e indefinida, tanto que seu nome reflete o vento sem forma, chama a atenção e a inveja da deusa Afrodite na qual manda seu filho Eros (deus do amor, conhecido como cupido) devastar o coração da princesa, mas o deus-angélico acaba atingindo o próprio coração ao avistar Psique e com isso faz Apolo, através de visões do oráculo, encorajar o rei a sacrificar Psique por criar desordem na balança divina, já que sua beleza estava fazendo com que os homens a adorassem em vez dos deuses do Olimpo. O mito termina com a princesa mostrando que é digna da lealdade dos deuses e se casa novamente com Eros, mas como uma nova deusa angelical do panteão grego, um fato curioso é que Psique, como deusa, tem asas de borboleta ou de mariposa quebradas para demonstrar suas marcas de mudança corporal e espiritual.

A psicanálise ver esse mito como forma do indivíduo terminar sua conjunção, tanto que a imagem de Afrodite é representante da cobiça, inveja e vaidade da mente feminina e a Psique seria alma-virgem, sem um propósito, com desejo de se encontrar, ou seja, a busca das mulheres sempre rodeia Afrodite e Psiquê na construção de seu ‘eu’. O artigo retrata de forma similar o mito em:

De um ponto de vista discursivo, podemos dizer que o corpo não é uma entidade física dada, a priori, mas sim uma entidade constituída através da interação e do discurso. Nessa mesma linha, a corporeidade passa a ser vista como parte integrante e inseparável das práticas discursivas. Como construtos discursivos, questões relativas ao peso, tamanho e formato do corpo são tematizadas e tornadas relevantes através das interações discursivas (sejam elas interações face a face, interações mediadas, ou quase-interações mediadas e essas questões são frequentemente usadas como forma de responsabilizar os atores sociais por suas ações). (Discurso, culto ao corpo e identidade: representações do corpo feminino em revistas brasileiras.2017.p.72)

Os “olimpianos” são definidos por Edgar Morin (1984) como aqueles seres transformados em “sobre-humanos” pela cultura de massa. São os astros e estrelas de cinema, os campeões esportivos, modelos, governantes, pintores e outras celebridades. A imprensa seria responsável por revesti-los de um caráter mitológico e, por outro lado, por buscar mergulhar em suas vidas privadas a fim de extrair delas a substância humana que permite a identificação pelo público.

Logo na obra, é retratada a venda das imagens de “modelos olimpianos”, vendendo o discurso de Psique, ou seja, conquiste, molde-se, torne-se o que grandes pessoas querem que você seja e se torne uma pessoa de sucesso. Tanto que 80% dos exemplares analisados ​​pela equipe do artigo, trazem capas com modelos de corpos “deusados”. O que comprova o fato das revistas venderem uma imagem alienada, quase inatingível e rotulada para o público feminino de acordo com o período modal, já que a análise foi realizada mensalmente, e foi levantado que em um mês um grupo era “deusado” e no outro seria um grupo diferente e quase oposto ao anterior.

Com isso, o trabalho consegue catalogar e comprovar que a construção do culto ao corpo em geral está atrelada ao que é vendido pela indústria cultural, e que os leitores de revistas, muitas vezes, não percebem que estão utilizando informações do gênero à construção de um casulo social para evitar confrontos pela sociedade.

A equipa do artigo consegue transmitir esta perspetiva de forma coesa, numa linguagem que apresenta confrontos com o material de suporte, uma vez que as revistas têm uma linguagem informal, académica e falada/narrada e os artigos científicos seguem o teor da linguagem culta, sem “exagerismo” ou cativos do leitor. Porém, isso só aparece na análise das revistas, o restante do artigo consegue teorizar através de boas referências a identidade feminina afetada pela indústria cultural através do consumismo.

Saulo Ferro por ele mesmo:

“Técnico em Programação de Jogos Digitais que adora fazer os roteiros, escrever poesias, crônicas e arrisco em escrever letras (às vezes boas) para músicas”

O blog Pedra Lascada propõe temas sobre educação, cultura, política, literatura e atualidades, entre outros. Todas as informações e opiniões expressas nos textos são de responsabilidade de seus respectivos autores, todavia, nos reservamos o direito de selecionar os textos a serem publicados, conforme critérios próprios. Você também pode compartilhar suas produções no Blog Pedra Lascada. Não custa nada socializar ideias e compartilhar conhecimentos. Se desejar, entre em contato com a gente! É permitida a reprodução parcial ou integral dos textos autorais publicados neste blog, sem necessidade de autorização prévia, desde que citadas a fonte e a autoria e que o uso não seja para fins lucrativos.

Imagem em destaque extraída do site Raptis Rare Books

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