Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos…
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
[Poema de Natal – Vinicius de Moraes)
Me preparando para mais um dia de alegrias, que é o do retorno das crianças à escola, resolvo dormir mais cedo. Acordo de madrugada com um 38 nas costas. Não é fácil, eu sei. Só quem já passou por isso sabe bem como é a sensação. Apesar disso, e diria que até mesmo por ter passado por isso, sou uma pessoa privilegiada.
É que a experiência acumulada com o passar dos anos talvez tenha me dado um tanto de serenidade para encarar até com certo humor as adversidades da vida.
Confesso que no instante em que abri os olhos, antes de qualquer coisa, só consegui pensar em limpar a remela dos olhos; depois, como ocorre com tantas outras pessoas, vi minha história passar num relance, mas não em slowmotion como dizem acontecer, e sim em time-lapse.
Não pensei em deus, porque em deuses não acredito, embora curiosamente eu tenha uma impressionante fé, mas na humanidade – e uso a expressão “impressionante” não como superlativo do meu otimismo, mas como ironia mesmo, porque com tantas desgraças produzidas e reproduzidas pelos seres humanos (produzidas inclusive em nome de suas crenças) admito que tem sido bem mais tentador acreditar em seres criados pela imaginação humana do que nos próprios seres humanos.
Surgiram em minha memória fatos que sequer eu imaginava ter vivido, e muito provavelmente eu tenha inventado a partir da miscigenação de histórias vividas por mim com as histórias vividas por outros, contadas por adultos em algum momento de minha infância:
… Eu menino de dois anos, pés descalços no meio de uma infinita plantação de melancias rechonchudas como a minha barriga era naqueles tempos… Chorando porque queria comer melancia ali mesmo… Meu avô me oferecendo um pedaço de melancia partida numa pedra, com uma terna expressão na face que me fez sorrir e me fez chorar, porque eu não conseguia entender se aquele “agora come a melancia que eu parti…” não seria completado por “… senão eu parto você no chicote”. Não, ele não disse isso, só tive medo que dissesse. E por medo chorei bastante, alternando sorrisos agradecidos a cada naco de melancia que devorava e lambuzando as mangas e a gola da blusa com o doce caldo da fruta misturado com o salgadinho das lágrimas…
… Ainda menino, um pouco mais velho, chorando porque queria andar de carroça para, quem sabe devido a um pródigo espírito aventureiro, fazer o caminho mais longo que levaria até a casa dos avós… E depois chorando porque estava na carroça e minha mãe tinha ido a pé, cortando uma trilha até aquela casa de tábua, meio pau-a-pique, com redes na sala, pregadas no teto, o quintal de terra batida com algumas árvores frutíferas na parte de trás…
O fato é que eu chorava demais, tinha medo de tudo e ao mesmo tempo uma espécie de fascínio pelo sentimento de medo, pelas histórias assustadoras de assombração, fantasmas e coisas do tipo que os adultos contavam às crianças para que elas fossem dormir mais cedo, mas que nem sei se se davam conta de que (pelo menos no meu caso) realmente possuíam o incrível poder de me fazer voar para cima do colchão e ficar quietinho embaixo do cobertor. No entanto acordado. A noite toda.
… O crânio de macaco que um dos tios tinha consigo, e que eu nunca pensei em perguntar se teria sido de algum macaquinho de estimação que ele tivera em tempos idos (talvez um dia pergunte, se é que crânio de macaco existira mesmo; mas a simples lembrança – real ou imaginada – me fez recordar o misto de fascínio e medo que o objeto me despertava, ou teria despertado, já não sei) …
… O bode comendo os fios elétricos expostos de um caminhão…
… Os cachos de uva transformados em imaginários cavalos, bois, vacas, porcos e outros animais do interior (bode não, porque bode comia fios elétricos de caminhão).
… O índio em Embu das Artes, na entrada da casa de dois cômodos em que vivíamos minha família com as famílias de um ou dois tios, e outros tantos primos… O índio querendo tirar fotos – “tira, moça, é baratinho” … E eu atrás das pernas da minha mãe (ou de alguma tia?) ao mesmo tempo assombrado e encantado com aquela pessoa ser à nossa frente, com os rostos, peito e barrigas pintados…
… O porão da casa da rua A em Santo André (morávamos no porão, não na casa) … O sapo na escada… O colchão que quase pegou fogo inteirinho depois que, por pura arte para ver o resultado, risquei um fósforo em cima dele.
… Os beliscões doídos do Seu Dirceu, que era seu modo de cumprimentar amavelmente as crianças, ao mesmo tempo que dizia: “Ô, meninão, mas já tá um moço feito” … O delicioso cheiro de café torrado e moído em sua casa em um moinho de manivela cuja imagem me aparece como uma nítida fotografia.
… A terrível sensação da areia que eu coloquei um dia na boca, só para sentir o gosto. E gosto não tinha nenhum, mas os grãos entre os dentes e na língua me causaram uma aflição hedionda.
… A minha mãe passando cera no chão de casa. “Que qui é isso, mãe?”. “É cera, menino!”. “É gostoso, mãe?”. “Não é de comer, menino, é de passar no chão.”. “Mãe, não é de comer mesmo?”. “Já disse que não! É de passar no chão…”. “Mas mãe, será que é gostoso? …”. Minha mãe levanta, abre a gaveta da pia, pega uma colher, um pouco de cera: “Toma menino, come aí e deixa eu terminar meu serviço!”. E era gostosa, pelo menos a consistência. O sabor não.
… O dia em que, na primeira série, disse à professora que minha mãe ia conversar com ela para mudar de horário porque eu tomava remédio para dormir à noite e tinha muito sono pela manhã. “É verdade isso, Marcelo?”. “É verdade, profefora” (eu trocava os sons “ss” por “f”, o que me custou muitas confusões, ainda mais porque eu gostava muito daquele refrigerante de limão da Antártica). “Mesmo?”. “É mesmo, profefora, e ela está lá fora me esperando”. “Então vai atrás dela, menino”. E, aos meus sete anos, fui correndo livre leve e solto para casa, sem nunca ter saído sozinho nem na calçada. Em casa, não sei se mais assustada por eu ter voltado sozinho para casa ou porque a professora me deixou sair da sala (e depois de quase ter de fazer respiração boca-a-boca em si mesma para se recuperar do susto), minha mãe decidiu não fazer uso “pedagógico” das temidas Havaianas azuis. “Ah, bonito, hein! Você disse para a professora que não podia ficar na escola porque tinha sono pela manhã?! Pois vai dormir. A manhã toda! E ai de você se levantar dessa cama!!!”.
… Os bonequinhos articulados feitos com o miolo das caixinhas de fósforo, cada um com seu rosto, cada um com seu nome…
… Me veio à lembrança (palavra por palavra, como se eu tivesse lendo de novo) até aquele famigerado texto sobre a despoluição do Rio Sena, que a professora de Geografia da quarta série – ah, dona Lucinda! … – nos fez decorar para a prova, e do qual levei anos de sessão de terapia para conseguir esquecer.
… O barzinho do Seu Ivo, que ficava na esquina e era a parte da frente da casa onde morávamos na Afonso Lopes, com aquele balcão de madeira cheio de doces, o baleiro…. “Seu Ivo, me dá um guaraná?” (Não era guaraná que eu pedia, mas naquela época eu chamava refrigerante de guaraná, porque era mais fácil falar guaraná). “Que guaraná você quer, menino?”. “Quero aquele ali, ó” (apontando para a garrafinha verde em cima do balcão”). E Seu Ivo, como se forçando as vistas para enxergar melhor, com aqueles olhinhos miúdos iguaizinhos o do Mister Magoo: “Não to vendo. Diz o nome que é mais fácil eu achar”. “Eu quero Soda. Soda Limonada Antártica, seu Ivo”. Risos (custei anos para entender o porquê).
… O primeiro dia no magistério. Quinze anos e uma timidez que até hoje tem quem duvida. As perguntas de sempre, feito por todas as professoras: “Porque você resolveu fazer magistério?”. As mesmas respostas, ditas por todas, com uma ou outra pequena variação. E eu, sentado uns três lugares atrás na primeira fileira da esquerda, próximo à porta para sair correndo e sumir no mundo, debruçado sobre a carteira (com a cabeça escondida entre os braços e só os olhos para fora). A princípio aliviado porque as colegas lá da outra ponta começaram a responder primeiro e assim eu poderia ir pensando no que responder, fui ficando cada vez mais angustiado porque não sabia o que falar; decidi falar exatamente o mesmo que todo mundo (“porque eu gosto de crianças”). Então, quando todas as trinta e nove cabeças estavam voltadas em minha direção com seus setenta e oito ouvidos prontos para captar até o som de um clipe caindo no chão e seus setenta e oito olhos me apertando contra a parede, a professora: “Então, Marcelo, porque você resolveu fazer magistério?”. E eu, certo que responderia o mesmo que todas, mas nervoso demais: “Porque as crianças gostam de mim”. A professora levou uns cinco minutos para conseguir conter as gargalhadas das minhas colegas, e as dela.
Perdi minha timidez quase naquele instante que (agora eu entendo) simbolizou uma ruptura necessária à minha aprendizagem, ao meu amadurecimento a à minha sobrevivência. Aquela criança que os médicos recomendaram tragicamente à mãe que levasse “para morrer em casa” não apenas encontrou um caminho para seguir, mas um sentido e um jeito de caminhar.
Acordado de madrugada, e após tantas experiências vividas, finalmente consigo compreender qual a exata sensação de chegar aos trinta e oito anos. Como eu disse lá atrás – ou melhor, como eu disse lá no começo (são duas formas de dizer a mesma coisa ao contrário, mas com igual significado): só quem passou por isso sabe bem como é a sensação…