Após a estipulação de um manual de condutas para os servidores públicos da Câmara Municipal São Bernardo do Campo o assunto ganhou proporção nacional.
Entre os conteúdos do manual constam recomendações de como se vestir, que cores de esmalte usar, tipo de perfume, como cumprimentar, como não ser “deselegante” para encerrar uma conversa que se prolonga ao telefone…
Nas redes sociais frequentadas por servidores públicos existem até os que (por complacência, benevolência ou verdadeira concordância mesmo) defendem a medida, mas ao que parece estes são minoria.
Comentários críticos, memes e chistes começam a tomar conta das redes porque, de fato, certas recomendações constantes na dita cartilha são surreais e anacrônicas, para dizer o mínimo.
Brincadeiras à parte, precisamos falar sobre isso… Não sobre cada um dos itens da cartilha em si, porque os meios de comunicação já estão abordando o tema e divulgando o conteúdo de forma exaustiva.
Precisamos falar sobre o que está está implícito, o que não está sendo dito (e que verdadeiramente interessa).
Para começar, uma pergunta se faz necessária…
O que teria motivado a publicação de tal manual e em quais princípios sustentam tal motivação?
Segundo o autor da medida, a motivação estaria na necessidade de garantir qualidade no atendimento aos munícipes e o pressuposto seria o transpor para o serviço público o que já seria uma prática na iniciativa privada.
Quem em plena consciência haveria de ser contrário à qualidade no atendimento aos munícipes?
Afinal, o poder público (ao menos em tese) existe para isso, para oferecer serviços de qualidade, que também tem a ver com o modo como os agentes do poder público – os servidores em geral – lidam com os usuários e com os colegas de trabalho. Neste sentido, faz parte agir de forma comedida, tratar com respeito e urbanidade e até estar trajado de forma conveniente ao trabalho.
No caso de São Bernardo do Campo, o Estatuto dos Funcionários define como um dos deveres do servidor “apresentar-se ao serviço em boas condições de asseio e convenientemente trajado, ou com o uniforme que for determinado”.
Porém, antes que alguns se precipitem ladeira abaixo repetindo o parágrafo acima para tentar defender o indefensável, afirmo que o conteúdo do tal manual pouco ou nada contribui com a elevação da qualidade do serviço público. Diria mais: em alguns pontos atrapalha.
É preciso estar atento…
É preciso estar atento para o fato de que trabalhar em boas condições de asseio e estar convenientemente trajado não tem relação algumas com regras de etiqueta, com a cor do batom, do esmalte, tipo de perfume, com combinações de tons e sobretons nas vestimentas, com uso de roupas sem rendas etc e tal…
Ao desconsiderar que a natureza e a finalidade do serviço público são diferentes – e em grande parte opostas – à natureza e finalidade da iniciativa privada, e tentar transpor para o campo público determinados conceitos localizados em algumas ilhas da empresa privada, o manual apresenta como padrão universal uma estética específica, unilateral e, portanto, excludente: a estética burguesa.
O feio, o bonito, o elegante, o deselegante, o adequado e o inadequado, o conveniente e o inconveniente…. vistos por esta ótica acreditada como universal é prejudicial à qualidade do serviço público porque, além de abordar tais conceitos de maneira distorcida e não raramente (quiçá intrinsecamente) com machismo, tenta eliminar – e, sendo impossível eliminar, tenta camuflar (falsear) – a pluralidade de culturas e de padrões estéticos, pluralidade esta presente nos munícipes que os servidores públicos de todo país, e de São Bernardo, atendem cotidianamente; pluralidade esta da qual fazemos parte.
Visto que a alegação para o manual é a preocupação com a melhoria da qualidade do serviço público, subjacente ao estabelecimento dos referidos padrões, fermenta uma ideia (quiçá inconsciente. Ou não) de que trajes e adornos de outras culturas seriam inapropriados e afetariam a qualidade do atendimento…
Iniciativa privada e serviço público: naturezas distintas
De outro lado, ainda que não seja proibitiva nem impositiva, mas pretenda ser, como alega seu autor, propositiva, o privilegiamento de um determinado conjunto estético em detrimento da pluralidade da cultura brasileira não contribui em nada para que o munícipe sinta-se melhor atendido, porque a qualidade do atendimento requer também a constituição de vínculos, que por sua vez se estabelecem à medida que seja possível ao munícipe criar uma relação de identificação e de identidade com o serviço público e com os servidores que o atendem.
Eis, aí, um dos perigos de tentar transpor para o serviço público, sem considerar a natureza e a finalidade deste, padrões e práticas da iniciativa privada. Esta não está nem um pouco preocupada com a pluralidade – nem de seus clientes, nem de seus funcionários – e, como seu objetivo é vender determinado conjunto de produtos para um público específico precisa estabelecer padrões e obriga os funcionários a se adequarem a estes padrões, inclusive aos padrões estéticos.
Parafraseando um famoso marketeiro, a preocupação da empresa privada não é atender a necessidade, mas sim criar necessidade. Se as pessoas estiverem satisfeitas em suas necessidades, elas não consomem; se não sentirem necessidade de consumir, não compram (quando podem comprar, claro!).
Já para o serviço público a preocupação é atender a necessidade, satisfazê-la, e para isso tem de lidar com a diversidade, acolhê-la, sê-la.
Iniciativa privada e serviço público: naturezas distintas e opostas. Portanto, tentar transpor a lógica e os padrões de uma para a outra é tanto equivocado como contraproducente.
Há de haver (e já existem) parâmetros
Engana-se quem interpreta que com estas reflexões eu esteja defendendo um “laissez- faire, laissez-passer“, que a partir de agora passemos a ir trabalhar os homens de sunga e as mulheres de biquíni ou vice-versa, conforme o gosto de cada um.
Penso que há de haver algum parâmetro e, a bem da verdade, na falta de um existem dois.
Um deles já é praticado em larga escala pelos servidores públicos de um modo geral, quase sem exceção: tal parâmetro chama-se bom senso, graças ao qual ainda não vimos, por exemplo, servidores chegando ao trabalho com roupa de praia… Se (fato certamente isolado) alguém cometa um deslize no uso do bom senso e se exceda em seus trajes ou trejeitos, não serão regras de etiquetas que resolverão a peleja.
O outro parâmetro (que define concretamente o conceito da expressão “trajar-se de forma conveniente”) é o que estabelece a necessidade de uso de uniformes e equipamentos de proteção individual (EPIs) a funcionários de diferentes quadros, entre os quais GCM’s, determinados profissionais da saúde e de diversos quadros operacionais dos serviços urbanos, da educação etc.
No caso, “trajar-se de forma conveniente” significa trajar-se de forma segura, condição necessária a diversos profissionais para que exerçam suas atribuições com qualidade. Para que isso aconteça, é preciso que o município passe a garantir essas condições, isso porque o governo anterior, com a conivência da direção do Sindserv que continua omissa, deixou faltar uniformes, botas e outros equipamentos de proteção individual.
É isto que não está sendo dito até agora. Precisamos falar sobre isso, sobre condições de trabalho, sobre o quadro reduzido de funcionários, que sobrecarrega e adoece os servidores e afeta a qualidade do serviço público.
Regras de etiqueta não melhoram a qualidade do serviço público. Condições dignas de trabalho e de vida sim!