Ainda que se valendo de categorias questionáveis como pós-modernismo – ideologia especifica do neoliberalismo (CHAUÍ apud FRIGOTTO, 1995: 79), no campo da esquerda – e de uma suposta superação do conceito marxista de cultura, Canen e Moreira não negam o papel dos conflitos e das relações de poder no seio da sociedade, ao contrário, os realçam, afinal, não pode haver “educação multicultural separada dos contextos das lutas de grupos culturalmente dominados, que buscam modificar, por meio de suas ações, a lógica pela qual, na sociedade, os significados são atribuídos.” Aliás, para eles, “a educação multicultural não é uma concessão, mas sim o resultado de lutas iniciadas no âmbito de movimentos sociais e populares visando a uma participação mais igualitária na vida social e cultural”.
Essa disputa pela modificação da lógica de atribuição de significados, sem dúvida uma disputa “simbólica”, mas concreta, de cunho semântico, mas de efeito prático, não é desprovida de razão; por isso mesmo Suárez (1995: 268) afirma que os educadores críticos “devem (re)construir novas categorias analíticas e interpretativas que permitam vincular a compreensão dos processos, relações e práticas educacionais institucionalizadas com os sentidos culturais (e também pedagógicos) que se constroem fora da escola, mas que a incluem e a determinam”. Não por menos, Canen e Moreira afirmam que as discussões multiculturais, no âmbito político, têm recaído sobre a “necessidade de ressignificação de conceitos como direitos humanos, democracia e cidadania, de forma a articular, em suas formulações, reivindicações identitárias, afirmação de padrões culturais singulares e garantia de representação política”.
A questão da construção das identidades plurais é um conceito-chave no texto analisado. Além de constituírem e ao mesmo tempo serem constituídas pelas “multiplicidades de culturas”, as identidades precisam ser compreendidas como processos, fluidas, multifacetadas, rejeitando-se o reducionismo e a estereotipia.
Os autores adotam o que consideram multiculturalismo crítico, em cuja abordagem as “diferenças culturais não podem ser concebidas à parte de relações de poder”. Consideram que o processo curricular, inserido nesta perspectiva multicultural crítica, visa: “promover o respeito pela diversidade multicultural e preparar os alunos para o trabalho coletivo em prol de justiça social”. Segundo Canem e Moreira, o trabalho curricular precisa “articular a pluralidade cultural mais ampla da sociedade à pluralidade de identidades presente no contexto concreto da sala de aula onde se desenvolve o processo de aprendizagem”, o que equivale a evitar que se reduza a “educação multicultural a um elenco de tópicos versando sobre características étnicas e culturais da população”. Para tanto, caberia à escola pesquisar o universo cultural dos estudantes para promover esta articulação. Apontam os autores também que não se deve reduzir a educação multicultural a uma disciplina, mas sim que a educação multicultural perpasse todas as áreas do conhecimento, preocupando-se com a adequação dos conteúdos e das estratégias. Os Parâmetros Curriculares Nacionais apontam nesse mesmo sentido, propondo, através da transversalidade, a inserção de temas relativos à pluralidade cultural, sexualidade, saúde etc.
Na formação docente, os autores apontam algumas questões para se refletir: o “perigo da homogeneização identitária” no estudo de grupos étnicos específicos, como índios e negros. Na perspectiva multicultural crítica, o currículo deverá abarcar a preocupação com a complexidade das diferentes identidades constitutivas dos grupos. Também apontam que existe uma grande diferença em se estudar um determinado grupo e não pertencer a ele (olhar de fora) e se estudar o mesmo grupo e pertencer a ele (olhar interno). Indicam os autores, inclusive, a necessidade de se elaborar políticas educacionais e projetos curriculares em parceria com os grupos aos quais os projetos são destinados.
Canem e Moreira, ainda, delineiam alguns procedimentos que consideram importantes na formação de docentes: “associação de elementos cognitivos e afetivos na prática pedagógica; sensibilização para a diversidade cultural e sua influência na educação; conscientização cultural; desenvolvimento de uma prática reflexiva multiculturalmente comprometida; superação de preconceitos e estereótipos; problematização dos conteúdos (…); reconhecimento do caráter múltiplo e híbrido das identidades culturais”.
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[Continua…]
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