“Um fantasma ronda a Europa” …

Um fantasma ronda a Europa, o Brasil e, especialmente, as primeiras aulas de todos as disciplinas dos cursos de Magistério, dos cursos de Pedagogia, dos cursos de especializações… Também do início dos cursos de aperfeiçoamentos pedagógicos às primeiras semanas do início na profissão e volta-e-meia quando nos deparamos com novos colegas ou, ainda, nas dinâmicas e nutrições de recepções de equipes ronda o fantasma daquela velha e eterna novidade, que é a pergunta: “Por que me tornei professor?”
Essa é, a mim, a pergunta de milhões cujas respostas talvez alguns considerem de centavos, porque não há um baú a ser descoberto, escarafunchado nos primórdios da infância em que se identifica uma centelha, uma fagulha que indique, agora, que os caminhos que trilhei, as escolhas que fiz e que me levaram a novos caminhos a trilhar foram frutos naturais, consequências inevitáveis de um dom ou de uma predestinação cujas raízes despontavam já no alvorecer ou antes, no estágio embrionário, intrauterino, nascente de sonhos ou projeções maternas ou paternas – a bem da verdade, se disso dependesse, professor não teria sido…
Desnecessário, ainda, buscar respostas no percurso escolar daquele garoto que, por tempos, nem sequer sonhava em mudar o mundo, nem o seu próprio mundo; apenas seguia se equilibrando nas cordas bambas da vida de uma típica família proletária, migrante de estado, migrante de cidade, migrante de bairro, de casa… que mal se perguntava de onde vinha, para onde ia e, tal como um personagem da famosa canção de Belchior, sem dinheiro no bolso e vindo do interior.
A pré-escola, de matrícula não obrigatória, era para poucos e, por mais que minha mãe buscasse vagas, não conseguiu matrícula para nenhum dos três primeiros filhos. Por assim dizer, em minha infância não tive “jardim de infância”, mas também não tive grades; tive jardins e ruas em que brincava quase livremente; os maiores perigos eram imaginários: o homem do saco, a bruxa e outros monstros, o anoitecer com suas sombras e silêncios entrecortados por risadas e gritos distantes vindos do alto do morro, bem distante, onde havia um prédio que se iluminava a noite…
Já o perigo real era acompanhar meus pais em visita a um dos compadres da família, na Rua A, que sempre recebia as crianças com beliscões nada discretos nos pequenos braços, cujas marcas a mãe notava, mas, por força do patriarcado, restava apenas olhar resignada e prometer a si mesma nunca mais pisar na casa daquele homem.
Se, quando criança, me faziam a terrível pergunta que deveria ser terminantemente proibida de se fazer a uma criança: “O que você vai ser quando crescer?”, a resposta era uma só: bombeiro!
Por bons anos, moramos em um bairro próximo a um lago em que eram frequentes as mortes por afogamento; dizia-se que esse lago se originou da extração de areia e que, quando as pessoas nadavam e tocavam os pés no fundo, ficavam presas e, com isso, se afogavam; o lago, no entanto, tinha profundidade de uns 10 a 15 metros, senão mais, e era muito improvável que alguém conseguisse chegar ao seu solo…
Contradições à parte, o fato é que meu pai costumava nos levar para acompanhar os salvamentos de vidas e, na pior das hipóteses e costumeira das vezes, os resgastes dos corpos.
Não ficava impressionado com os corpos inchados, os olhos e os lábios arroxeados… o que me impressionava mesmo era a ação dos bombeiros em seus escafandros, descendo ao fundo da água, subindo, descendo novamente até encontrar o que procuravam para, não podendo salvar a vida, ao menos oferecer às famílias dos desafortunados o alento de velar seus mortos.
Ser bombeiro me era a resposta mais óbvia nesse contexto; mais do que um sonho ou um desejo mesmo em nível intuitivo, era a projeção que eu poderia fazer numa fase da vida em que não podemos nos dar conta de que não deveria caber a uma criança responder a esse tipo de pergunta dos adultos, como se pouco ou nada fosse, como se viesse a ser somente depois, já adulto e com uma profissão.
O diabo da utilidade, tão denunciada pelo saudoso Rubem Alves, até hoje não deixa as crianças em paz…
De qualquer forma, ser professor não estava no horizonte naquele momento, nem estaria por muitos anos, muito pelo contrário…
Iniciei a vida escolar na então primeira séria, naquele prédio do alto do morro, que ficava iluminado a noite e de onde minha imaginação de criança confundia as algazarras e exclamações dos recreios e intervalos entre as aulas com estridentes gritos de bruxas, tenebrosos uivos de lobisomens e assustadores rugidos de outros seres fantásticos que povoavam as histórias que os adultos contavam quando, pelo assombro, queriam nos fazer ir para cama logo e deixá-los conversar seus assuntos sem interrupções ou ouvidos curiosos.
Pela diferença de dias quase atrasei um ano, pois, naquele tempo, para ser matriculada exigia-se da criança a idade completa de sete anos até o primeiro dia letivo, que em 1984 seria antes do dia 05 de fevereiro. Não fosse pela ação de minha mãe que, pacífica durante toda a vida, desembainhava sua espada sempre nos momentos decisivos, estaria escrevendo estas memórias somente no ano que vem, aos 48 anos.
A escola seguia com seus lânguidos e eternos métodos que se expressavam nos exercícios de prontidão para preparar para a caligrafia, nas repetições intermináveis dos alfabetos ao alto das lousas, nas contagens de cabeças que bem podiam ser de gado, na rígida organização das filas nas entradas e saídas, nas atitudes imperativas dos adultos e no silêncio imperioso imposto às crianças sentadas em carteiras duplas, rigorosamente dispostas umas atrás das outras e organizadas em fileiras milimetricamente equidistantes; nos castigos e outras violências simbólicas e concretas utilizadas como ferramentas de controle dos corpos e (tentativa de) controle das mentes, nas cartilhas com desenhos estereotipados e “hieróglifos” até então indecifráveis, nas fórmulas matemáticas a serem utilizadas “um dia, quando você for maior”, na decoração de textos e datas… Em tudo isso e outros tantos que se repetiam dia após dia e ano após ano que em muito não via sentido, não entendia o porquê e tampouco entendia o porquê não podia perguntar o porquê disso ou daquilo, mas que, em provas orais e escritas, precisava demonstrar que havia assimilado.

Em geral, as aulas e as lições eram feitas para um devir, um vir a ser longínquo e abstrato, tão imaginário como os seres fantásticos da primeira infância… nesse cenário, como estudante seguia o curso do rio com as melhores braçadas que podia dar, mas sem me sentir compelido a tentar chegar em primeiro lugar – quando muito, chegar à margem, marginal, sem afogamentos.
Felizmente, como repetia uma professora no curso de Pedagogia, “as crianças aprendem, apesar do professor”. Essa professora jamais conseguiria imaginar que a expressão ressoava em mim com um sentido indizível, intenso, pois, entre outras coisas que custei a aprender, demorei para aprender a ler e a escrever.
Não encontrava motivação alguma nos coros de letras e nas junções de sílabas, buscava as letras pelos nomes das letras, mas não entendia o que elas diziam, porque não via relação entre os nomes delas e os sons que elas produziam e, quando desvendava os múltiplos sons, não conseguia de fato compreender o que queriam dizer…
Afinal (para não perder o costume), como canta o Arnaldo Antunes, em “Nome Não”:
“Os nomes dos bichos não são os bichos
Os bichos são
Macaco, gato, peixe, cavalo
Macaco, gato, peixe, cavalo
Vaca, elefante, baleia, galinha
Os nomes das cores não são as cores
As cores são
Preto, azul, amarelo, verde, vermelho
Marrom” (…)
(Se conhece a música, sei que você leu cantando em pensamento e está tudo bem, ninguém precisa saber, mas saiba que todos sabem. E vida que segue!).
Em casa, usava os cadernos para brincar de escrever e era como se de fato estivesse escrevendo, depois lia para minha mãe. Eu sabia que os desenhos que fazia não eram realmente letras, que a escrita e a leitura eram fantasias, porém, me sentia feliz em poder escrever e ser ouvido, e me sentia com desejo de entender, e me perguntava sobre como escrever, e percebia que deveria existir alguma regularidade…
Lembro do exato momento em que descortinei as palavras – foi na escola, mas não foi como um estalo e não foi pela cartilha ou pelas silabações das palavras; foi, como dizia a Ilka, “apesar de”.
Acontece que naquela mesma escola que me assustava descobri uma biblioteca até então inacessível, que por vezes foi meu refúgio. Mesmo sem saber ler, sempre que tinha uma chance, entrava nela, acanhado, e folheava os livros, até algum adulto me retirar, com uma advertência do tipo: “Anda, menino, pra sala, quando aprender a ler você volta! ”
Se de um lado não morria de amores pelas aulas, pelos teatros e danças em que era obrigado a participar e que me fazia travar, tamanha a minha timidez, me encantei pelo mundo das ideias escritas, pelas histórias, pelas lendas indígenas, pelos contos africanos, pelo folclore brasileiro, pelos seres fantásticos que não circulavam livremente pela escola, como um dia acreditei, mas que viviam nos livros que eu devorava na biblioteca.
Confesso que, algumas vezes, acabava o recreio e ficava lá, escondido entre as prateleiras, as pernas cruzadas, um livro aberto no colo e, quando voltava para sala, atrasado, imaginava alguma desculpa tão fantasiosa quanto as histórias que eu lia. Contudo, quando interpelado, geralmente dizia que estava no banheiro e perdi a hora…
Salvo honrosas exceções, os modelos de professores e de educação que tive nos meus primeiros oito anos de escolaridade não me faziam considerar a possibilidade… A essa altura da vida eu mal lembrava que um dia pensara em ser bombeiro, todavia, quando levantavam a hipótese de ser professor, eu respondia, com sincera repulsa pela ideia: “Eu, professor? Nunca! ” …
Não que as experiências foram predominantemente ruins, pelo contrário, adorava as aulas de redação e desenvolvi uma boa memória para decorar textos e ideias (desde que fizessem sentido para mim). Contudo, as experiências negativas – algumas em casa, inclusive – foram suficientes para me fazer acreditar, por muito tempo, que eu não seria capaz de ensinar, visto que não me sentia capaz de aprender verdadeiramente algumas coisas. Ademais, certas figuras de professores me pareciam tão infelizes, tão sisudas!…
Ocorre que, livremente citando Marx, fazemos a nossa própria história não exatamente como queremos, sob circunstâncias de nossas escolhas, e sim sob aquelas com que nos deparamos diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.
O meu encontro com a possibilidade de me tornar professor se deu por acaso, ao final do oitavo ano, quando um amigo sugeriu fazermos uma prova para entrar em um curso de magistério, o CEFAM. A princípio, refutei a proposta, entretanto, ao saber que se tratava de um curso em período integral e com bolsa de estudos, mudei de ideia: ainda que não fosse a profissão sonhada, o curso oferecia duas oportunidades: ter uma remuneração básica com formação profissional e permanecer o dia todo fora de casa – essas duas condições, por consequência, me propiciariam uma relativa autonomia, que eu mais do que desejava – necessitava.
O processo seletivo consistia em uma redação e as experiências, de um modo geral positivas, que tive com o universo da leitura e da escrita foram decisivas para escrever relativamente bem e, assim, ser selecionado.
O magistério não me oportunizou meramente uma formação profissional, ele ampliou meus horizontes e me apresentou uma perspectiva totalmente nova de pensar o mundo, as relações sociais e de problematizar a própria Educação, que até então não era para mim uma preocupação; o curso me forneceu ferramentas para aprender a questionar e, antes disso, aprendi que questionar era não só possível, como necessário.
Em geral, as professoras e professores possuíam concepções progressistas e o próprio currículo do curso, de base construtivista e que também se referenciava na pedagogia freiriana, me instigava a questionar e a tentar romper com as metodologias e referências educacionais introjetadas no decorrer de meu percurso escolar, enquanto estudante.
Era libertador perceber o despertar da consciência de que é possível fazer diferente; que, mais do que isso, é possível fazer a diferença e superar modelos arcaicos, conceitos e preconceitos, a começar por nós mesmos. Assim, a partir do primeiro ano do magistério, comecei a me apaixonar pela Educação e, quando tive a oportunidade – já na condição de professor de Ensino Fundamental na rede pública municipal –, iniciei o curso de Pedagogia, que me propiciou aprofundamento de conhecimentos em uma fase em que tinha mais amadurecimento para compreensão das ideias e teorias relacionadas ao exercício da profissão.
Todas estas horas de escrita poderiam ser resumidas no seguinte: não decidi fazer magistério porque, como resposta padrão nas primeiras aulas, “eu gosto de crianças” – muito embora não me pareça que se possa ser um bom professor de crianças desgostando delas; muito menos decidi fazer magistério porque, como efetivamente disse ao me atrapalhar intencionando reproduzir a resposta padrão: “as crianças gostam de mim”.
Poderia ter resumido, mas não teria o mesmo sentido. Na verdade, nem sentido teria.
O magistério veio primeiro, escolhido pelas circunstâncias e condições concretas da vida, da minha história; o desejo e a decisão de ser professor, ainda que a ideia me assustasse pelo medo de não estar à altura dos desafios, foram frutos dessa escolha.
P.S.: Parece que foi um pulo, mas hoje, 21 de maio, dia em que escrevo este texto como tarefa do curso Leitura e Escrita na Educação Infantil (LEEI), completo exatos 25 anos (cerca de 9.130 dias) de efetivo exercício no magistério, dos quais os últimos dezessete atuo como diretor escolar – professor de origem e quiçá ainda, como me descreveu um professor na faculdade, “péssimo aluno e ótimo estudante”. Veremos.
“E nossa história não estará
pelo avesso assim, sem final feliz
Teremos coisas bonitas pra contar
E até lá, vamos viver
Não olhe pra trás
Apenas começamos
O mundo começa agora
Apenas começamos”...
(Legião Urbana)

Gosto muito de ler seus textos! Nesse vou comentar porque sempre me interesso quando o tema é “por que resolvi ser professor”… Há muitos anos na Educação, inicialmente eu observava as respostas de minhas colegas, que eram tão lindas: “nasci com o dom”; “desde criança sabia que iria ser professora”; “todo mundo falava que eu seria ótima professora”… e não tinha coragem de falar sobre os motivos que me levaram a escolher o Magistério, pois eles não eram tão sublimes assim. Escolhi a carreira porque, na época, era uma profissão que pagava muito bem por meio período e eu poderia dar conta de trabalhar e cuidar da família. Com o tempo, fui aprendendo coisas que o curso não tinha abordado (fiz Magistério em 1980) e comecei a refletir sobre a importância do meu convívio com as crianças e suas famílias. Hoje, já aposentada, tenho certeza de que fiz a melhor escolha da minha vida! Trabalhar na Educação fez com que eu me tornasse uma pessoa melhor! Nunca mais vi o mundo com os olhos de antes dos meus estudos… E levo para minha vida o que aprendi!
Obrigado por compartilhar a sua opinião e a sua experiência. Se de um lado não entramos por um motivo que poderia não ser considerado tão “nobre” (o que é pra mim é questionável, porque não há nobreza maior do que buscar a sobrevivência com dignidade), por outro lado nos encontramos na profissão. O mais importante é o que assumimos as nossas escolhas com compromisso e responsabilidade, e chegar a essa altura com orgulho da escolha feita, é para raros. E que inveja boa da sua aposentadoria! Será que chegaremos lá, são e salvos? 🙃