Falo como poeta Eu sou livre e não sabia Mas essa inconsistência do papel E essa minha língua vermelha, mordida Carne, nervos e sangue - o doce aroma Corte exposto no indicador esquerdo Eu sou poeta e não sabia. Eu sou poeta e não queria Conhecer a louca esperança tonta Que faz a escrita toda torta O vício da rima e o vício da mina Só, mano, é isso aí! Pra sair do contexto Nada do que faço é certo Eu sou o homem no deserto. Falo com o falo À flor da pele o hormônio O palavrão improferível A idade média da razão Eu sou o fruto que sai da terra O ofídio - tal como, frio e paciente Eu sou poeta e não sentia. Não sentia que era isso Essa coisa, esse asco Essa pedra bruta, esse fiasco Esse profundo fundorifício Detalhado na teta e na testa Marca de fuzil alemão Que eu nunca vi. Não, menina, eu não vou fugir Apenas quero me esconder Desse jeito meu (seu) de ser Da fantasia de sua boca na minha De seus lábios carnudos, calientes, Tangendo a fímbria do amanhecer... É que sou poeta e não dizia. Por isso agora falo. . [M.S. / Em algum momento do milênio passado]
Tag: Marcelo Siqueira
Leituras, lembranças e esquecimentos
Por Marcelo Siqueira
Talvez nem mesmo ele recorde, mas foi meu irmão Fernando que disse, anos atrás, que eu lia sempre os mesmo livros e, dos mesmos livros, os mesmos capítulos, ou as mesmas histórias, ou os mesmos poemas (algo assim).
Até hoje não sei se ele falou por sarcasmo ou por elogio, mas a verdade é que essa observação não me irritou nem um pouco, muito pelo contrário, fiquei demasiado admirado com seu olhar perspicaz (ainda mais porque, naquela época, achava que eu era meio invisível na família).
Na ocasião não respondi nada, porque era muitíssimo mais turrão para admitir razão nas opiniões alheias (como dizia Allan, indignado e com toda a justeza: “Marcelo, você é chucro!!!”).
Confesso que ainda tenho muito de teimoso, mas os anos de magistério me foram particularmente benéficos, pois o convívio com toda gama de pessoas, adultas e crianças, de tantas opiniões divergentes e convergentes e outras “nem tanto ao céu nem tanto ao mar“, me abriram os horizontes para novos mares, ares e territórios.
Das teimosias que ainda sustento, geralmente estão as que se referem às questões de princípios, porque ainda tenho pra mim – e talvez de forma até dogmática – que os princípios não se negociam.
Mas o meu irmão sabia exatamente o que estava dizendo: eu costumava realmente ler os mesmos livros, os mesmos capítulos, as mesmas histórias, os mesmos contos, os mesmos poemas…
Digo mais: apesar de ter feito algumas leituras variadas ao longo desses anos e constantemente agregar novas leituras ao meu repertório, ainda costumo retornar aos mesmos livros, capítulos, textos!…
E acho que faço isso pelo prazer que me proporcionam; e faço como quem busca manter algo de essencial, de original em minha trajetória de vida, justamente para nunca esquecer das minhas raízes, para não esquecer da impagável dívida social que tenho com aqueles que fizeram e fazem parte direta ou indiretamente da minha vida, da constituição da minha identidade que vai se construindo à medida que continuo vivendo, e convivendo.
Assim, de vez em quando vou colecionando novos livros – geralmente adquiridos em sebos, não só por serem mais baratos, mas porque os livros usados têm todo um encanto que os livros novos não têm: eles passaram por outras mãos, por outras vidas, por outras vistas, por outros olhares! Ler um livro usado é compartilhar com outras pessoas de uma mesma leitura, com novas possibilidades de interpretações, é dialogar com a história contida no livro, e é dialogar com a história do livro, desse objeto impresso folheado, rabiscado, marcado…
Por essas e por outras que, apesar de novos livros, volto às mesmas leituras. E talvez por isso algumas pessoas pensam que eu tenho uma memória daquelas! Pura ilusão…
Minha memória me trai constantemente. Diariamente procuro pelas chaves que acabei de pegar para sair de casa, ou da escola (isso quando não as esqueço trancadas dentro da diretoria, e tenho de reabrir cadeados, portões, portas… e fechar tudo novamente).
Pra mim, o alarme da moto deveria ter um localizador eletrônico, para que eu pudesse facilmente encontrá-lo, por ter esquecido de guardá-lo devidamente (mas daí seria capaz que eu tivesse de ter um localizador para o localizador do alarme…).
Nomes então!… Sinto muito, não é por descaso com as pessoas que conheço, mas levo tempos para decorar um nome, e segundos para esquecê-lo!
O curioso é que para sobrenomes eu não tenho a mesma fraqueza mnemônica: entre tantos outros, lembro até hoje do sobrenome de uma professora da segunda série, que me “ensinou” a fazer os espaçamentos dos parágrafos, utilizando o inusitado recurso didático do cocorote no meu cocoruto – desculpe a aliteração! Eu traduzo: cascudo na cabeça -. O sobrenome dela era Clock.
É um paradoxo, mas apesar de ser péssimo para descrever pessoas, as fisionomias eu guardo que é uma beleza: o problema é que eu encontro uma pessoa conhecida, aí eu olho pra ela, sei que a conheço, não lembro o nome nem lugar, e fico sem graça de perguntar: “Desculpe, de onde nos conhecemos mesmo?”
Vai que ela responde: “Nós trabalhamos na mesma escola por 12 anos – a mesma que eu e você ainda trabalha”!
Claro que estou exagerando, mas do jeito que a coisa tá indo, é sempre um risco, né…
Semana passada, esqueci durante um dia inteiro a senha de um e-mail que acesso diariamente, e incrivelmente só lembrei da senha quando deixei de me preocupar em lembrá-la.
Outra coisa: tem gente que pensa que é lenda quando conto que, uma vez, só fui lembrar que era meu aniversário no final da noite, quando encontrei com meus familiares e eles me deram os parabéns.
Quem não gosta de mim pode até maldosamente insinuar: “Ele é tão chato que ninguém deu os parabéns antes”. Eu não me importo se falarem isso, porque desconhecem o contexto. O importante mesmo é que essa história eu vou usar como álibi se um dia (que nunca vai acontecer, que fique bem claro!) esquecer o aniversário de casamento: “Olha, amor, me perdoa, mas se eu já cheguei até a esquecer do meu aniversário…”
Algumas pessoas brincam (ou advertem): Menino, você é muito novo para esquecer tantas coisas!… Eu também acho, mas esqueço; e só não fico (muito) estarrecido com isso porque o Rubem Alves disse que o esquecimento é saudável, isso ainda porque – também não recordo onde li, mas li! – ao contrário do que pensavam os médicos, cientistas e afins, a função da memória não é guardar, mas sim esquecer, porque se o cérebro guardasse todas as informações as quais somos expostos cotidianamente, entraríamos em pane rapidinho e, no mínimo, ficaríamos loucos.