- Contextualizando…
Na primeira semana de agosto, a secretaria iniciou um processo de avaliação – denominada formativa – que se deu de maneira caótica, para usar de um dos adjetivos utilizados por profissionais envolvidos: falta de informações prévias de como seria o processo, informações desencontradas, cronogramas desorganizados, aplicadores sem preparo e com orientações desiguais para escolas diferentes, ou que não sabiam dar orientações claras durante a aplicação dos testes… Houve relatos, por exemplo, sobre aplicadores de teste de fluência leitora que tinham dificuldades com a leitura, só para ficar em um exemplo.
Nesse contexto, rotinas escolares foram desorganizadas e se criou um clima de desconforto, insegurança, angústia e apreensão entre educadores de todos os segmentos, especialmente professores e membros de equipes gestoras.
Recentemente, os dados dessas avaliações começaram a ser compartilhados e, como era previsível dada a forma como ocorreram as avaliações, relatos gerais indicam inconsistências e distorções de dados, não apenas em relação a resultados avaliativos, como também – conforme relatos de profissionais – em listagens de alunos, em critérios de avaliação, entre outros problemas (dificuldade de acesso e de compreensão dos dados que estariam confusos etc). Novamente o clima de desconforto, insegurança, angústia e apreensão voltou a tomar conta dos educadores diretamente afetos ao processo, somado a sentimentos de injustiça por conta de resultados potencialmente distorcidos – de um lado porque a secretaria decidiu atrelar o alcance de metas e resultados ao pagamento de bônus, de outro porque esse processo confuso acaba por colocar em questionamento a competência profissional de professores e equipes gestoras, o que é de fato uma injustiça.
2. Sobre o “caos” – uma leitura e interpretação de contextos
A respeito dessa situação caótica, primeiramente, não parece ser simplesmente caos; a coisa indica método e intencionalidade. Cria-se o problema para vender a solução logo em seguida. Esse é o caminho do desmantelamento e da privatização do serviço público.
Segundo, precisamos refletir o quanto estamos fortalecendo a opressão – e o adoecimento de colegas de trabalho – sendo cúmplices (por adesão ou por omissão) dessa política.
Em terceiro, é preciso denunciar, resistir e combater.
É importante destacar que tudo indica se tratar da velha tática neoliberal de sucatear para depois justificar o repasse de responsabilidades (e recursos, principalmente) à iniciativa privada, a culpabilização dos profisisonais, individualmente falando e uma desresponsabilizacão de gestores e de gestão superior.
Um processo avaliativo, conduzido de forma destrambelhada resulta dados igualmente destrambelhados, distorcidos e que mostra rasuras, e não fotografias, jogando na lama a imagem da educação e dos educadores.
Esses resultados distorcidos podem servir de argumentos para a privatização da educação, na forma de parcerias público-privadas, terceirização de serviços em substituição à equipes concursadas já existentes, aquisição de pacotes e combos “educacionais” – cartilhas, materiais didáticos, sistemas de avaliação, programas computacionais etc e de estabelecimento de mecanismos de controle político de equipes técnica, docente, gestora, de apoios etc, a pretexto de, por exemplo, constituição das equipes supostamente a partir dos “perfis técnicos”.
Uma vez implementada essa etapa da privatização da educação pública, a segunda etapa passa a ser efetivar processos avaliativos externos em ambiente milimetricamente organizado para que, nesta segunda etapa, os “resultados” pareçam melhores.
Em outras palavras: em primeira instância se usa o processo avaliativo destrambelhado para justificar privatização de serviços, equipes e materiais didáticos; num segundo momento, se utiliza de um processo avaliativo extremamente controlado para que os resultados sejam “satisfatórios” e, com isso, justifique a manutenção dos mecanismos de privatização.
Alguns alertas: os profissionais que, por necessidade material ou oportunismo político, se deixam seduzir pela política de bonificação por metas e resultados não estão apenas participando do “apocalipse” da educação pública, pior: estão o promovendo.
Ninguém está isento das consequências, tanto no âmbito da educação em geral a ser cada vez mais desmantelada, como no âmbito dos direitos individuais e ganhos salariais: no horizonte, surge novamente o risco de se colocar equipes em extinção na vacância e a perda de titularidade por unidade, para dar lugar a equipes terceirizadas e a remanejamentos conforme critérios discricionários; além de que bônus e gratificações são provisórios, não incorporam aos vencimentos e a política de “meritocracia” impõe por meio do estímulo à alta competitividade e do individualismo, ambientes adoecedores às equipes e aos profissionais.
3. Uma coincidência nada casual
Posterior a essas reflexões, tive a felicidade de assistir a brilhante webinar com a Professora Dra. Giovana Zen, com o tema “A Alfabetização Como Um Direito da Infância“. Compartilho abaixo, como reforço dos alertas deste post, alguns destaques:
“Quando nós falamos que um método, uma concepção de alfabetização é baseada em evidências científicas, o que nós geralmente ouvimos é: isso é confiável, é rigosoro, é seguro… essa é a intenção do discurso: ele chega a professores, gestores, formuladores de política, transmite credibilidade, mas nós precisamos nos perguntar o que realmente está por trás desta expressão.
O problema é que nem sempre essa expressão é usada de forma honesta. Há concepções que se valem dessa expressão “baseada em evidência científica” com péssimas intenções. Ela se torna um instrumento retórico, porque ela legitima práticas que não respeitam a complexidade da alfabetização e muitas vezes atendem mais a interesses políticos e econômicos do que as necessidades reais das crianças, e é aqui que nós precisamos refletir: Porque algumas instituições se valem da oferta de soluções pedagógicas milagrosas sob o argumento da evidência científica?
Porque elas vendem material, formação, avaliação… um pacote completo para resolver a tragédia da alfabetização nas redes municipais, mas a gente também precisa se perguntar como se constrói esse discurso trágico em torno da alfabetização para que a gente possa entender melhor o uso dessa máxima “baseado em evidências científicas”, e é sempre bom retomar o Darcy Ribeiro quando ele dizia que a uma crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto; e essa crise não é um acidente – ela é planejada, sustentada, reproduzida… começa muito antes da divulgação de resultados em testes de larga escala, começa com políticas de avaliação baseadas em concepções reducionistas e mecânicas de alfabetização.
Na prática não se avalia para melhorar o ensino; se avalia para fabricar a crise e logo em seguida vender a solução, uma solução que já está pronta, formatada e alinhada aos interesses do mercado, aos interesses políticos… um projeto que muitas vezes nasce dentro dos órgãos governamentais e é sustentado por eles.
É importante destacar que muitas dessas soluções prontas são produzidas e comercializadas por grandes fundações que administram o capital privado, então sob o manto da colaboração e das boas intenções elas transformam alfabetização em mercadoria, consolidando interesses que são econômicos e colonizando as práticas pedagógicas”.
