Capitalismo e expressão corporal

Nota da Pedra Lascada: O presente artigo (constituinte de um dos trabalhos do curso de Pós-Graduação em Ed. Infantil) esboça alguns pensamentos suscitados pela observação de uma apresentação (La Nouba) do famoso Cirque Du Soleil. Certamente carece de aprofundamento e maiores argumentações, mas pode servir como um disparador de novas reflexões, favoráveis ou contrárias, que sejam. Ao elaborá-lo, tomei a liberdade de utilizar um relato (também trabalho da Pós) de uma colega educadora em SBC, Marcleide Pilar – relato que considero de uma profunda sensibilidade e humanidade. [M.S]

“Esta lona furada/ – parece que ninguém/ lhe dá nada!… – /Já viveu histórias e loucuras,/ Sonhos que passaram,/ Tantas aventuras./ Abrigavam os homens/ Mais fortes,/ Muitos enfrentando a morte/ E embalava as noites/ Com modinhas/ e mulheres a bailar/ (…) Sei que ninguém acredita/ Que, mesmo rasgada, é bonita./ É só reparar e não ter pressa/ A lona é como um barco de ponta-cabeça./ Coisa de doido, maluco e lelé/ Ir remando contra a maré/ Mas se os furos estão para cima/ Não tem como afundar./ No peito da lona/ Eu vejo/ Meninos a voar/ E fazem dela um céu,/ Oh, morena,/ Como a tua saia sempre a girar./ Rodam numa invenção/ Que os furos se enchem de luz./ E surgem em toda a parte/ As estrelas que ainda brilharão.[1].

 Em um tom emocionado, a colega Marcleide Pilar relata as suas memórias e vivências a respeito do circo. Tal relato, compartilhado comigo, constitui um dos seus trabalhos para o presente Módulo (Expressões pelo Movimento). Considerando-o um recorte bastante interessante a respeito do tema em questão, tomo a liberdade de citá-lo, para então dialogar com as suas ideias, ora me aproximando, ora me distanciando, buscando, assim, construir algumas conclusões que – com o perdão do paradoxo a seguir – definitivamente sempre são transitórias.

 “Tenho 50 anos completos e me lembro do circo que existia na minha infância e juventude, posso dizer que era o mesmo circo que a minha mãe costumava freqüentar quando visitavam a nossa cidade. Lembro-me da alegria que sentíamos quando o circo estava em nossa cidade, assim como os parques de diversão com músicas românticas e atuais para aquela época cheia de romantismos, onde víamos casais apaixonados receberam bilhetinhos do correio elegante.

Os circos eram simples, feitos de lona muitas vezes toda furada onde goteiras de chuva se formavam em climas chuvosos deixando o chão todo enlameado que, para solucionar o problema da lama colocavam muita serragem no chão ou pedrinhas (britas) para o público poder se acomodar nas arquibancadas feitas de madeira.

Era um circo que cabia em todos os bolsos, tanto o pobre como o mais abastado podia pagar pelo ingresso e assistir aos espetáculos, onde havia: palhaços engraçados, malabaristas, domadores de animais selvagens (leões, tigres, macacos, elefantes, entre outros) que muitas vezes, eram animais velhos e doentes, muito judiados pelo confinamento e adestramento a custa de chicotadas, mas que era um dos poucos entretenimentos que existiam, trazendo a arte para um público humilde, mas que gostava de contemplá-la assim como qualquer pessoa.

Hoje percebemos o quanto o circo mudou, se tornou mais elaborado, mais sofisticado e seletivo, não sendo acessível a todos os públicos, principalmente o Cirque du Soleil que é um verdadeiro espetáculo, onde só entram pessoas que podem pagar por ele. Procuram se instalar em lugares onde o chão é pavimentado, com acomodações em cadeiras e não arquibancadas, onde as pessoas podem assistir aos espetáculos, bem acomodadas, sem se preocupar com as intempéries e assistir a espetáculos fabulosos, onde percebemos que nada pode sair errado, os artistas mesmo quando são crianças tem os corpos modificados pelos exercícios escaldantes e intermináveis, não usam animais nos espetáculos, mas as pessoas tem um treinamento árduo para que tudo saia bem que podemos até igualar estes treinamentos ao adestramento de animais, pois que acabam sendo torturados por uma disciplina sem igual. Mas, enchem os olhos dos espectadores que pagam por isso”.

Com tal relato, Marcleide acertadamente identifica um movimento de mudanças profundas na maneira como as pessoas compreendem – no exemplo em questão – a cultura, a diversão, o entretenimento em si. Obviamente, este movimento de mudanças profundas não se limita à forma de entretenimento, pois, concordando com Marcos Garcia Neira, “configura-se como lugar-comum a identificação do atual momento histórico como período de intensas mudanças em todos os campos[2].

É possível que algum “sentimento de mudança” (desta vez peço perdão pelo pleonasmo a seguir) seja uma constante presença no ser humano, surgindo desde os seus primeiros anos de vida, quando enfim toma consciência de si, e acompanhando-o até o momento do último suspiro (quiçá após, em existindo vida seguinte). Afinal, se fôssemos listar as características essenciais do ser humano e da própria humanidade, certamente a transitoriedade seria uma delas, marcando o indivíduo e a sociedade em suas múltiplas dimensões. “Tudo flui como um rio”, já asseverava Heráclito de Éfeso, há mais de 2300 anos.

Sujeitos de diferentes períodos históricos também reconheceram o seu próprio período marcado por profundas transformações. Poderíamos enumerar dezenas de exemplos, contudo, decerto nenhum período histórico se compara neste sentido ao atual, cujos avanços nos conhecimentos científicos, principalmente a partir de meados do século passado, têm impulsionado vertiginosamente transformações no campo da tecnologia, das comunicações, novas configurações nas relações de trabalho, nas relações sociais, na produção material e cultural, entre outros.

É emblemático que há mais de 160 anos passados, Marx e Engels já identificavam no modo de produção capitalista uma sociedade marcada por transformações constantes:

 “A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. (…) Essa revolução contínua da produção, esse abalo constante de todo sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se ossificar. Tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas. Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte.[3]

 É fato considerável que as relações sociais e as relações de produção material e cultural adquiriram, em nossa época, complexidades possivelmente sequer vislumbradas por Marx e Engels. O poder da burguesia de revolucionar incessantemente os meios de produção tomou uma dimensão impensável há 165 anos; as fronteiras entre os países e as fronteiras econômicas ganharam novos contornos, e as próprias classes sociais se tornaram internamente multifacetadas, tão complexas a ponto de alguns estudiosos considerarem essa complexidade e o surgimento de novas formas de organizações e de movimentos sociais como sinais do fim das classes sociais e da própria era moderna. Um equívoco – acredito; todavia não é possível aprofundar esta reflexão neste trabalho. É suficente, para o momento, destacar que este trabalho pressupõe o período histórico contemporâneo como continuidade e aprofundamento (e não ruptura ou esvanecimento) do modernismo inaugurado pela ascensão da burguesia como classe social dominante e do capitalismo como modo de produção predominante, que persiste.

Se por um lado o capitalismo tem esse poder de revolucionar constantemente suas relações de produção material e cultural, por outro também parece ser muito mais característico do modo de produção capitalista na fase contemporânea a coexistência de diferentes tempos e condições: o velho, ao ser suplantado pelo novo, e os antagonismos propriamente ditos, não são exatamente eliminados; eles passam a coexistir, persistindo tensões que, antes expostas, passam a ser sublimadas. Essa superação, que não se dá pela simples eliminação da condição anterior, parece ocorrer num movimento de assimilação, de tal forma que torna possível a coexistência das mais variadas formas de relações de produção material e cultural.

Talvez, a expressão popular que mais se aproximaria desse poder de síntese, ou melhor, de sincretismo do capitalismo seja aquela que diz que se não pode vencê-lo, junte-se a ele. Acontece, porém, que o capitalismo, para sobrepor aos seus antagônicos, não se associa simplesmente; ele toma para si os seus opostos, assimila-os, transforma-os em marcas, em mercadorias ou, se antes já eram mercadorias, reinventa-os, recicla-os para que melhor possam atender às suas finalidades. Um exemplo célebre deste movimento de assimilação é a transformação da imagem do revolucionário socialista Ernesto Guevara de La Sierna, ícone da rebeldia juvenil, em marca de produtos e estampas de camisetas e dos mais variados objetos vendidos em grandes magazines e shoppings mundo afora. Já o caso do circo é um exemplo do poder de assimilação e reinvenção do capitalismo.

A arte circense e a história do circo são milenares. Registros datados de mais de 5000 anos dão conta de contorcionistas, acrobatas e equilibradas na China Antiga; registros da época do Império Romano apontam para o surgimento do circo por volta do século IV AC. O circo, portanto, não é nem de perto uma invenção da modernidade. Aquele circo retratado por Marcleide é herdeiro do século XIX, quando então o Brasil passou a receber famílias ciganas e companhias circenses. Os palhaços inicialmente falavam menos, comunicando mais por movimentos corporais – mímicas –, o que ainda pode ser visto atualmente.

Pode-se dizer, seguramente, que a expressão corporal – o movimento do corpo como forma de comunicação – de um modo geral é o foco da arte circense, seja naquele circo retratado por Marcleide, sejam nas novas companhias, como o Cirque Du Soleil. É bem verdade que o adestramento dos animais foi substituído pelo adestramento do corpo humano, levado às suas últimas  consequências no caso do Cirque Du Soleil. Entretanto, a diferença entre o circo antigo – que ainda resiste bravamente – e o Cirque Du Soleil, não é que este, ao contrário daquele, comporia um verdadeiro espetáculo. É preciso considerar que o Cirque Du Soleil se constitui antes de tudo como uma marca, uma empresa de entretenimento que estende sua atuação a vários cantos do mundo e vai integrando artistas e, assimilando expressões e manifestações corporais que possam atender aos seus objetivos: vender um novo conceito de espetáculo, um novo conceito de estética e de artes, multicultural, que possa ser consumido principalmente pela classe “abastada”, mas também palatável a diferentes grupos e classes sociais – espetáculo reinventado à luz dos avanços tecnológicos e dos conhecimentos nos vários campos da pesquisa humana – da estética, das artes, do entretenimento… O Cirque du Soleil não se apresenta como um verdadeiro espetáculo, mas como uma vertente; antes disso, ao vender o seu conceito de espetáculo tenta torná-lo hegemônico.  A diferença estrutural entre um e outro, apontada por Marcleide, revela justamente um ajustamento às novas demandas de consumo cultural. Para sobreviver enquanto empresa lucrativa, o circo também precisa se reinventar, revolucionar as suas relações de produção. É o que faz o Cirque Du Soleil. A produção praticamente artesanal do circo tradicional vai, assim, sendo suplantada pela uso das tecnologias de ponta,  pela reprodução de uma cultura de massa – nem por isso menos elitizada e que pode ser consumida diretamente ou posteriormente, com a aquisição de livros, DVDs, CDs etc. – produzida pelo Cirque Du Soleil.

No espetáculo “La Nouba” percebemos uma estética hollywoodiana, em que a ação frenética e sincronizada dos artistas-atletas é acompanhada sincronicamente pela música orquestrada e pelas luzes. Ao invés da velha charanga circense tocando chulas e lundus, os ritmos alucinantes de uma melodia digitalizada. Não há espaço para o improviso, muito menos para o erro, e cada movimento (dos artistas, da música, das luzes, do cenário) é milimetricamente planejado. Quanto aos artistas, podemos dizer que “a soma dos indivíduos não resulta no todo”, porque eles fazem parte do cenário tanto quanto a música, as luzes, e o próprio espaço de apresentação. Percebe-se uma tensão corporal refletida nos rostos dos artistas, ou, antes, dos “atletas”; uma tensão que de fato revela uma severa disciplina corporal que torna o movimento exaustivamente condicionado, tudo isso para vender um espetáculo e uma estética que “enchem os olhos dos espectadores que pagam por isso”.


[1] Lundu (gênero musical circense) de autor desconhecido; letra extraída do encarte do CD “Circo: Arrelia, Parlapatões, Figurinha, Antônio Nóbrega, Picolino, Pururuca”.

[2] Cf. “Educação Física na Educação Infantil: algumas considerações para a elaboração de um currículo coerente com a escola democrática”.

[3] Cf. Manifesto do Partido Comunista.

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