Duas tribos

Ela era tão sã e séria que as meninas a invejavam, os meninos a temiam e os adultos lhe duvidavam da idade. Não ter uns parafusos a menos lhe fazia uma falta; um pouco de maluquice lhe faria bem…

Mas aquele verão que estava se fechando para os princípios das águas marcianas seria marcado por muitos contrastes, alguns desassossegos e outros contratempos, a começar pela chegada daquela que em segredo apelidamos de “Sombra”, em contraposição da que um dia fora levada às pressas à administração central e jamais retornou, para nós desaparecida desde então pois, quando perguntávamos, nos respondiam simplesmente com um olhar silenciador.

Sei que algo havia se quebrado – sem recuperação se fora, irrecuperável ficara. De sorte que naquele final de estação, quando uma partiu e a outra chegou – uma sem dar tempo de levantar poeiras e outra sem dar-lhes tempos de assentar –, naquele final que prenunciava novos inícios, velhas e novas idades se cruzando em um cubículo que mal cabiam trinta e quatro mesas, dezessete assentos e quase o dobro de pessoas a lhes ocupar, muitas histórias aconteceriam e nenhuma seria contada – a não ser as histórias ocorridas entre frações de segundos e que, não fosse por capricho do destino e da imaginação que as preservaram na memória, teriam passado desapercebidas ou não teriam sido imaginadas.

Pois é sabido por todo mundo, inclusive por aqueles que fingem não saber: nenhuma história tem mais força e nenhuma é mais real que a história inventada, porque esta cabe em qualquer palma da mão, desde a mais áspera até a que nunca tocou no cabo de uma enxada ou de uma vassoura, nem mesmo quando criança, numa de brinquedo, quando brincava…

Naquele começo dos tempos tumultuados pelas elucubrações de egos provincianos de um novo reizinho mandão recém coroado e tão passageiro como todos os que o antecederam, tanto como os que o sucederiam; naquele começo temporão já estávamos estafados e estupefatos, com um sentimento de que os ombros não suportariam o mundo e nem mesmo o leve peso da mão de uma criança; estávamos carregados de uma sensação de que o ano mal começara e já havíamos experimentado todas as agruras que estavam por vir nos demais trezentos dias.  Tempos críticos em que (hoje entendemos) a melhor reza era a maldição, quando não a maledicência.

Um dia daquele fim de estação que abriria ciclos mais desesperados do que inesperados, justo eu que não era afeito às maldades que acometem qualquer menino nos seus onze anos, resolvi que era questão de honra lhe fazer falar um palavrão, um palavrãozinho, o mais inocente que fosse, um singelo “putz” já estaria de bom tamanho. Afinal, ela era tão sã e séria, que uns parafusos a menos e um pouco de maluquice colocaria equilíbrio à balança…

Ela nunca me havia feito mal; me tratava bem demais a ponto de tomar minhas dores e me salvar de uma coça que levaria de um grupo de meninos zombeteiros: numa atitude inédita para sua personalidade que nada tinha de elétrica nem de brava (mas somente de calma e… calma), se antecipando à ação deles, desferiu polposos golpes com sua lancheirinha rosa que não resistiu à força de seus impulsos de justiçamento e abriu-se toda fazendo com que o lanche se perdesse. Quanto aos meninos, estes nunca mais chegaram perto de mim.

Feu pão caiu no chão” – disse-lhe apontando o alimento que havia se perdido ao voar da lancheira e bater contra a mureta da quadra. Dando de ombros, ela abriu outra bolsinha, tirou de dentro uma garrafinha de refrigerante (o meu preferido) e, apontando para mim: “Você quer? Tem que falar o nome”. Sem hesitar, comecei a responder: “É fo…” Ela riu e eu fiquei com o rosto em fogo, sendo pego em meu ponto fraco que tantos trocadilhos geravam e que resistia a anos de tratamento; saí correndo sem terminar de dizer, mas dali em diante decidido a fazê-la falar por vontade própria o que eu dizia involuntariamente.

Fiquei dias sem lhe dirigir uma palavra, tramando mentalmente planos que a fariam perder a compostura.

Naquele lugar (onde imperava um silêncio perturbador imposto pelos gritos cortantes da mestra na arte de provocar um terror que me seguia noite adentro em pesadelos cujas cenas sempre se repetiam) apenas nos olhávamos à distância – ela numa ponta com um sorriso aberto e eu, da outra ponta da sala, retribuía com uma indiferença mal disfarçada, traído por um sorriso levemente puxado no canto direito da boca.

De vez em quando aprontava alguma coisa para ver se ela tropeçava na língua: colocava chiclete mascado em sua cadeira; deixava o tubo de cola líquida meio aberto em seu estojo de lápis coloridos; fazia gracinhas na fila do hino quando ficava próximo a ela…

Se é verdade que algumas pessoas têm sexto sentido, ela com certeza tinha sete – pelo menos um para cada dia da semana, porque nunca caía em minhas ciladas.

Acabado o ano, novos anos começaram e chegaram ao fim para dar lugar a outros que não traziam consigo nenhuma boa-nova. Paredes se levantaram entre nós; a distância que podia ser percorrida em curtos passos já não podia ser trespassada pelas portas fechadas e guardadas por outros alcaides que controlavam rigorosamente o ir-e-vir (e controlavam principalmente o permanecer, porque fora do alcance dos seus olhos nada se movia).

Nos momentos “livres” não nos permitiam mais nos misturar e àqueles que eram pegos em desobediência eram reservadas lições exemplares, dadas ao conhecimento geral para que ousadias não se repetissem.

Das poucas notícias que possuía dela nenhuma dava conta de algum desvio verborrágico. Apesar de estar bem diferente, mantinha algo de igualíssimo daqueles tempos.

Eu também já não era o mesmo e continuava tão igual ao que antes era, de tal forma que ao olhar no espelho não conseguia saber se estava vendo um reflexo ou se eu próprio era um reflexo e o ser real era o espelho olhando para mim… Às vezes tinha medo de dar as costas e ainda assim continuar me enxergando ao avesso, numa transparência que cegaria a vista, ou que a curaria de vez.

Um dia, num momento de distração dos bedéis, tomado de uma coragem que jamais tive arrisquei o couro das mãos e me aproximei dela. Quebrando o silêncio e forçando uma fala ridiculamente teatral que não saiu como ensaiada, apelei: “Por favor, você precisa falar um palavrão! Diga um qualquer, que eu não entendo como alguém depois que nasce se põe a viver anos e anos sem soltar um ‘puta merda’ pelo menos!”.

Ela olhava com uma passividade quase serena, como se não estivesse ali, como se fosse inalcançável e isenta das coisas mundanas. Olhava também como se transitasse em cima de um fio de nylon entre duas montanhas, um fio prestes a se romper, num frio prestes a ceder.

Seu rosto ruborizou, assim como ruborizava quando alguém a mirava bem nos olhos, pois era como se estivessem lendo seus pensamentos – a bem da verdade seus pensamentos gritavam por meio do silêncio que saía de sua boca, de sua voz quase inaudível, mas que continuava a pronunciar todos os “erres” e principalmente todos os “esses” com a perfeição de sílabas que pareciam saltar vivas diretamente de um dicionário, de modo que se apenas movimentasse os lábios e nenhum som produzisse, ou se somente sussurrasse, éramos capazes de entender cada palavra mesmo com os tímpanos furados e os olhos vendados.

Frizou as sobrancelhas e me olhou por um longo tempo; naquele momento percebi que ela não me reconhecera e, mais que isso, que a minha existência não fazia parte da existência dela, nem nunca fizera. Ela vivia a sua vida, eu a minha e um pouco a dela, cada um na sua, formando duas, ou mais, tribos.

Como fazia sempre em situações do tipo, coloquei a mão no bolso e, sem nada dizer, fui me encostar naquela mureta em que há tempos seu lanche se espatifara.

Às vezes nos cruzávamos pelos corredores e, quando nossos olhos se encontravam, ela tornava a sorrir aquele sorriso aberto e eu tornava a responder com aquela mal disfarçada indiferença, continuando a me trair pelo mesmo sorriso levemente puxado no canto direito da boca, até que um dia também fora levada às pressas à administração central, e a partir daí nunca mais…

No banco sueco em que costumava se sentar durante os intervalos, o traçado delicado de suas letras, talhadas em tamanho vistoso com a ponta de um canivete, formavam uma frase – “Abaixo a d…” –, que não conseguira terminar.

[M.S. – Junho de 2018]

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