Lili

(Música ambiente: “Thinking Of A Place” – The War On Drugs)

Joaquim começou como quem tira uma casca de ferida do corpo. Essa imagem nada romântica é uma metáfora ordinária, mas bem precisa, porque o corte está aberto  e porque o sangue, contido pelas veias, pulsa ao ritmo de um coração incontido, agarra-se à superfície da pele e denuncia a ferida aberta.

Enquanto risca o papel em branco, com demasiada pressão e letras trêmulas, olha para o espelho na parede à frente da mesa e percebe que não é o rei, mas a face – carmesim –  que está nua.  Não há nenhuma realeza nisso, apenas realismo e perplexidade.

Lili se foi.

O corte que sangra não é esse, ainda que também seja.

Sem dizer palavra Lili se foi. E onde faltam palavras aflui um oco logo abaixo da boca do estômago de Joaquim, um oco que consome as horas, os dias, as noites… consome e produz pensamentos…

Afora iscas lançadas em redes para pescadores perdidos em alto mar, as palavras foram esvaziadas. Lili também se despiu de palavras e ao se refugiar no silêncio e pelo silêncio disse mais do que poderia ou desejava.

Acontece que esvaziar palavras não é o mesmo que esvaziar as gavetas, os armários (ainda que – tal como as iscas-palavras – tenham ficado algumas peças espalhadas pelos cômodos)…  Então, Lili se vestiu com a roupagem que mais lhe dava sensação de segurança: uma fantasia de desprendimento.

Há sinais espalhados pela casa, mas não se completam em palavras, porque seguem cruzados e embaralhados, numa convulsão de eus, outros e nós. A palavra que quase chega a ser não chega a ser palavra: é o dito pelo não dito. E o dito pelo não dito cria realidades por vezes alternativas, em que tudo é possível. Antes improváveis, num mundo onde tudo é possível Joaquim e Lili se tornam impossíveis.

(O poeta tinha razão, ainda que não soubesse).

O dito pelo não dito é um terreno pantanoso, porque aparente, porque imagético. No campo das aparências a essência foge à percepção de Joaquim; se esconde nebulosa entre aquilo que é fato e aquilo que é interpretação de fato e aquilo que é somente imaginação.

O silêncio tem tanta força quanto o som. Poderoso, o silêncio pode até causar bem mais ruídos que o barulho mais ensurdecedor. Joaquim sabe a potência do silêncio; ele sente; ele experimenta. Ruidoso, o silêncio pode inclusive perturbar – e perturba – o sono de Joaquim, que passa noites a contar estrelas, deitado na rede da varanda, a mesma rede em que não se cansou de deitar com Lili.

Lili tem dimensão do poder das palavras. Não porque tenha lido – e leu – em algum lugar, mas porque ela sabe a ponto de sentir a concretude e o peso das palavras. E têm poder porque são carregadas de atos; elas são ação. Como ação, mobilizam, embora nem sempre movem e às vezes paralisam.  Talvez por compreender a potência das palavras verbalizadas é que Lili se cala.

Para Joaquim, poderosas, as palavras precisam ser verbalizadas, não para potencializar, mas para criar – ou delimitar – possibilidades. Ou, simplesmente, por respeito.

Mas Lili se foi. Levou as palavras. Ficou o silêncio.

Sustentando a impossibilidade de partir de onde supostamente nunca estivera, Lili refuta aquilo que busca porque se assusta quando encontra; e se assusta porque tenta definir paralelos, porque tenta comparar grandezas que não são comparáveis, mas são de igual importância, cada qual com sua medida, cada qual com seu peso – únicas e completas.

Não existe a justa medida porque não é caso de medição, muito menos de justiça. Mas Lili, calculando riscos reais e imaginários, se vê diante de uma equação que acredita sem solução. Essa equação tem um nome: Joaquim.

Indo, Lili se pergunta se algum dia veio e pensa que não se pode terminar o que nunca teve início, por isso, se deixa ir, como se inevitável fosse, legando a Joaquim, além do silêncio das palavras não ditas, alguns recados em post-its na geladeira e nenhum destino ao qual Joaquim possa responder. Lili compreende que o fato é dor, mas não se dá conta que o silenciamento do fato é tortura.

Talvez para Lili seja mais confortável se imaginar moinho de vento do que Don Quixote, pois há sempre a mística de ser dragão-escorpião, com a vantagem de que moinhos seguem seus cursos, indiferentes aos que ousam sonhar e ousam lutar pelo que sonham.

Mas Lili também sonha, por isso não é moinho de vento. A indiferença (disfarçada talvez) é possível que seja apenas um movimento de fuga e autopreservação. Não de, nem contra Joaquim. Do que ele lhe significa, do que ele lhe representa. Mas o que Joaquim representa e significa para Lili? Quem saberia dizer, se nem Lili sabe e, se sabe, não diz?

A rubra face de Joaquim desfalece sem menos, pálida de perguntas sem respostas. As interrogações multiplicam-se ao infinito e, enroscadas entre as prioridades e as  conveniências, buscam um esforço de entendimento. Já quase no fim da página, risca novamente o papel: “Entre tanto que sinto, o mais insuportável não é nem a falta, é a sua ausência“…

Joaquim relê tudo que escrevera e, na última frase, balbucia palavra por palavra. Por um instante acha sem sentido e, logo em seguida, verdadeira demais; picota o papel em pedaços minúsculos e atira ao cesto, até porque não era dor só o que Lili deixara ao partir.

Lili se foi, levou as palavras, deixou os sentimentos.

Nesse movimento, que é de paciência e de outras palavras bem-ditas, Joaquim sabe que é preciso se permitir, mas nunca se acostumar, porque se o poeta tinha razão em algo, não haveria de ter razão em tudo…

[M.S.]

Referências & inspirações

Imagem em destaque

Pixabay.com

Zangado

(Música de fundo: Piano – Concerto nº1 em E menor, op.11: II. Romance – Larghetto )

Enrolado em um cobertor rasgado ao meio – suficiente, porém, para cobrir todo o seu corpo –, ele dormia um sono profundo no banco da praça. Era um senhor sexagenário que, por analogia e por gracejo, havia recebido dos comerciantes locais e de seus consumidores ordinários o apelido de Zangado: exibia uma volumosa e emaranhada barba de tons grisalhos, uma estatura incomum e uma costumeira carranca; chamava a atenção também por dizer estar sempre acompanhado de um cachorro muito manso e serelepe de longos pelos ruivos e olhos tão azuis quanto o seu, sobre o qual afirmava, aos nossos ouvidos incrédulos, ter acolhido há 30 anos,  num dia em que fora visitar pela primeira vez a biblioteca central – a respeito deste encontro, alternava versões e acrescentava variações conforme o ouvinte, ou de acordo com seu humor, a fase da Lua ou a estação do ano, contudo, invariavelmente o relato começava com o cachorro caindo de um caminhão de mudanças e terminava com o animal dentro da biblioteca, em seu colo ou embaixo de seu paletó; desde então – afirmava – nunca se separaram e um dia voltaria com o amigo para sua terra natal, a Espanha, onde dizia ter sido maestro de uma orquestra sinfônica. Como se tornou mendigo, nunca revelara.

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Duas tribos

Ela era tão sã e séria que as meninas a invejavam, os meninos a temiam e os adultos lhe duvidavam da idade. Não ter uns parafusos a menos lhe fazia uma falta; um pouco de maluquice lhe faria bem…

Mas aquele verão que estava se fechando para os princípios das águas marcianas seria marcado por muitos contrastes, alguns desassossegos e outros contratempos, a começar pela chegada daquela que em segredo apelidamos de “Sombra”, em contraposição da que um dia fora levada às pressas à administração central e jamais retornou, para nós desaparecida desde então pois, quando perguntávamos, nos respondiam simplesmente com um olhar silenciador.

Sei que algo havia se quebrado – sem recuperação se fora, irrecuperável ficara. De sorte que naquele final de estação, quando uma partiu e a outra chegou – uma sem dar tempo de levantar poeiras e outra sem dar-lhes tempos de assentar –, naquele final que prenunciava novos inícios, velhas e novas idades se cruzando em um cubículo que mal cabiam trinta e quatro mesas, dezessete assentos e quase o dobro de pessoas a lhes ocupar, muitas histórias aconteceriam e nenhuma seria contada – a não ser as histórias ocorridas entre frações de segundos e que, não fosse por capricho do destino e da imaginação que as preservaram na memória, teriam passado desapercebidas ou não teriam sido imaginadas.

Pois é sabido por todo mundo, inclusive por aqueles que fingem não saber: nenhuma história tem mais força e nenhuma é mais real que a história inventada, porque esta cabe em qualquer palma da mão, desde a mais áspera até a que nunca tocou no cabo de uma enxada ou de uma vassoura, nem mesmo quando criança, numa de brinquedo, quando brincava…

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Colhendo o Dia

Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.
Por que tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.
[Ricardo Reis]

Primavera de mil setecentos e setenta e quatro

No dia em que você me deu bombos tentando me expulsar do seu coração, pensei no quanto a ironia das circunstâncias pode ser planejada e no quanto acontece inconscientemente, sendo apenas parte da mente de quem a interpreta.Então decidi que não mais tentaria. Comeria os bombons como a gorda os comeu sem nem mesmo me dar um pedaço, daria um último beijo e faria o último sexo, como se realmente fossem os últimos atos de uma vida tão valiosa quanto qualquer outra vida, como se eu pudesse premeditar os sentidos e os sentimentos, como se eu fosse o último dos homens e o primeiro dos pais.

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