Noventa e cinco centavos

− Quanto custa?

− Noventa e nove centavos.

Colocou a mão no bolso direito de trás da calça; reparou que estava sem a carteira. Não se preocupou. Com certeza teria caído no banco do carro, como sempre acontecia quando usava aquela calça verde musgo. Enquanto batia as mãos nos bolsos procurando alguma nota perdida, ou moedas do troco da manhã, pensou que não sabia porque ainda usava aquela calça, cuja cor não era das suas preferidas e o pano estava surrado pelo tempo, desbotado de tantas lavagens, ou antes, sabia sim: sentia-se confortável nela, era das poucas que se ajustava bem, não apertava no cós como as demais (e, maior vantagem não existia, podia tirar direto do varal e vesti-la sem se dar ao trabalho de levar ao ferro de passar, o que não era muito de seu costume, pois acreditava que o próprio uso se encarregaria de desamarrotá-las – hipótese em que teimava mesmo que os resultados refutassem a olhos vistos; porém, para seu espírito mais distraído do que prático, isto não era um problema). Sentiu algumas moedas e tirou-as com as pontas dos dedos, uma a uma, transferindo-a para a mão esquerda: dez centavos, cinco centavos, dez centavos, vinte e cinco centavos, outra de vinte e cinco centavos, mais uma de cinco centavos, uma de dez centavos, outra de cinco. Enfiou a mão mais fundo no bolso, apalpou novamente os demais. Era tudo. Entregou as moedas ao balconista.

O balconista era um homem magro e tão alto que era possível jurar que aquele balcão feito quase todo de vidro e com portinholas e tampão de madeira (no qual ele espalhou as moedas depois de as ter virado com um movimento rápido e barulhento semelhante ao de um jogo-de-bafo) fora feito sob medida para ele – os clientes mais baixos chegavam a ter de levantar as pontas dos pés para olhar inteiramente a extremidade do lado de dentro. Os mais comedidos nas gracinhas diziam que da casa de Seu Dedé – assim os poucos próximos chamavam ao balconista – até o estabelecimento costumava-se levar vinte minutos de longa caminhada, mas para o “Pernalta” – como o apelidavam na surdina os menos discretos – bastavam duas pernadas; outros, mais atrevidos e maliciosos, diziam que quando partisse dessa para melhor ao invés de um ataúde iriam descer-lhe os sete palmos dentro do próprio balcão, que paletó de madeira nenhum lhe serviria – e por extensão dessa piada de muito mal gosto e de péssimo agouro, quando saíam de casa pouco antes do almoço para “abrir o apetite”, como se dizia naquele tempo, avisavam as esposas que iriam “molhar o bico na budega do Branca de Neve”. Nada disso escapava ao seu conhecimento, mas ele, ainda que se se importasse (nunca viríamos a saber), jamais esboçara qualquer reação ou protesto.

Metódico, o balconista primeiro separou as moedas pelos valores; depois passou-as a contar, balbuciando os cálculos que fazia mentalmente.

− Está faltando cinco centavos – afirmou com um tom seco na voz, sem levantar os olhos, enquanto cofiava as pontas do bigode.

− Não senhor! Faltam apenas quatro centavos. – respondeu o homem da calça verde musgo.

− Pois sim. Que seja. Você precisa completar. O caixa não pode ficar negativo –, retrucou o balconista, ainda sem se dar ao trabalho de levantar a cabeça, enquanto pegava a tampa de uma caneta esferográfica que estava sob o balcão e passava a coçar um dos ouvidos.

– Ora, mas o senhor não vai fazer caso de quatro centavos… ou vai? Porque, se fosse o contrário, sabe…

Numa expressão que revelava uma certa contradição em seu humor, e sem dizer uma palavra, o balconista arcou as sobrancelhas grossas e agrisalhadas e em seguida franziu a testa; com um peteleco jogou a tampa da caneta para o lado e, segurando o pacote com uma das mãos junto ao peito e com a outra esticada, levantou e abaixou rapidamente os dedos, por três vezes. Ao observar esta cena, um rapaz levemente estrábico e uma moça pálida, que seguiam na fila de mãos dadas, olharam um para o outro e trocaram risinhos espontâneos, pois a cena lhes remeteu a um filme que haviam assistido no cinema na noite anterior.

A fila crescia e, junto com ela, a impaciência dos que aguardavam. Naqueles breves segundos, os clientes pareciam ter a sensação de que estavam meses à espera de serem atendidos e, a princípio, na forma de cochichos e depois em tons que não deixavam dúvidas do que estavam palestrando, começaram a comentar a situação entre si.

O da calça verde-musgo coçou a nuca e tornou a vasculhar os bolsos. Pensou em pedir que o balconista o aguardasse ir até o carro buscar sua carteira, mas diante do crescente burburinho, desistiu da ideia.

− Vamos, meu filho, o arroz está no fogo… – reclamou quase para si mesma uma senhora de cabelo com meio-coque e trajando um vestido de estampa cujo corte lembrava o de uma cortina de sala-de-estar.

− Ora, ora, deve estar achando que só tem ele para ser atendido. – respondeu o senhor de óculos com aros tão redondos quanto as próprias bochechas, em tom baixinho e esticando o pescoço em direção à senhora do meio-coque, que estava logo à sua frente.

Usando uma camiseta regata branca muito apertada para sua barriga avantajada e que também contrastava com o clima frio, um barbudo que acabara de entrar na fila e mal sabia o que estava acontecendo, decidiu esquentar o tempo e, batendo palmas compassadamente, soltou uma voz forte e grave que inundou o ambiente e teria afogado todos os presentes, se ela fosse a ressaca do mar, cujas ondas quebravam nas areias, para lá do outro lado da rua.

− Como é? Como é que é? É pra hoje ou pra amanhã?!

Com um Walkman preso à cintura e um fone de ouvido que tocava uma música bastante ruidosa, o próximo da fila parecia selecionar, de dentro de uma pochete volumosa e colorida, uma fita para substituir a que estava chegando ao fim. Não que não tenha percebido o que se passava, mas era o único que permanecia numa tranquilidade que beirava a indiferença. Às vezes olhava para um lado, olhava para o outro, olhava para trás, talvez observando o movimento ou à espera da chegada de alguém; às vezes puxava um pouco mais para baixo a aba do boné. Certamente estava ocupado com outros pensamentos.

O que estava em atendimento mais uma vez afundou o quanto pode as duas mãos, como se tentasse entrar com o corpo inteiro dentro dos bolsos da calça. Para seu alívio repentino, sentiu no pequeno bolso um corpo redondo, frio e metálico; ficou feliz, pois era a tábua de salvação que precisava naquele mar de vergonha no qual estava se afogando ao ser atirado aos tubarões pelo homem do vozeirão, que além de tudo tinha jeito de marujo – ao tirar do bolso, constatou que era a medalhinha de Santo Onofre, que naquele dia guardara no bolso, pois sua corrente havia quebrado.

Sem dizer uma palavra, virou as costas e saiu, sob olhares acusadores, deixando para trás o balconista com o pacote nas mãos e os noventa e cinco centavos em cima do balcão.

[M.S. – Julho de 2018]

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