Hoje recebi vários telefonemas de um número desconhecido, cujo ser do outro lado insistia o dia todo.
Normalmente não atendo número desconhecido, mas ao final do dia, por pura curiosidade, atendi: era Deus do outro lado falando.Quer dizer, não diretamente Deus, acho, mas uma pessoa que se propunha mensageira dos interesses divinos ou, se não mensageira, pelo menos testemunha.
Pois sim. Acredite! Se você consegue acreditar que o homem veio do barro e a mulher foi feita da costela do homem, por qual razão haveria de duvidar disto que lhe conto?
Muito simpática, a pessoa do além linha, na pressa de levar a “Palavra”, já foi logo explicando seus propósitos, esquecendo até de se apresentar.
Disse ela que era Testemunha de Jeová e que na impossibilidade de bater de porta em porta, devido ao Covid-19, tivera a iniciativa de bater de linha em linha.
Confesso: ela não disse com essas palavras – “de linha em linha” -; eu as inventei porque me soaram melhor do que escrever como ela literalmente falou: “decidimos telefonar para as pessoas”.
Achei tão interessante a iniciativa que nem me ocorreu perguntar qual o critério que ela usava para selecionar os números aos quais ligaria.
Se discava um número aleatório ou se pegava alguma referência com alguém conhecido, ainda que remoto, jamais saberei.
Fica pra categoria dos “mistérios da fé” e havemos de nos conformar com isso da mesma forma que nos conformamos em não compreender como diabos algum gênio (preso não na lâmpada, mas em um presídio) descobre nossos números e da plenitude de seu DDD 019 nos telefona para informar (primeiro com voz de menina e depois com voz de mano) que sequestrou aquela filha que nem temos e exige o resgate em recarga de celular ( ! ).
Enfim, sei que a voz do outro lado da linha (ou do além) já foi logo aproveitando o gancho da explicação que dera sobre o porquê estava ligando e não batendo à minha porta e perguntou se eu acreditava que um dia as doenças deixariam de existir.
Pergunta curiosa esta…
Senti que era como se a voz estivesse tentando jogar uma rede ao mar; talvez uma tarrafa, mais especificamente falando, porque tarrafas pegam pelas bordas. Se bem que, pelo método adotado, quando muito estava a lançar uma isca num anzol preso por uma linha (telefônica) que fisgaria às cegas – se sete peixes, sete pães ou uma vara de porcos, nem ela saberia.
Tampouco me pergunte que diacho de pães e de porcos poderiam ser encontrados no mar para pescar. Se o camelo pode passar pelo buraco de uma agulha, qual o problema com porcos e pães náufragos?
Mas, voltando à pergunta, que demorei refletindo o tempo que você levou para ler os três parágrafos acima: respondi que acreditava que não, que por mais que a ciência encontre curas para inúmeras doenças, é do processo natural da vida existirem doenças.
Após alguns segundos de silêncio constrangedor (creio que não era exatamente essa a resposta que a minha interlocutora anônima esperava ouvir), a voz iniciou um “mas, mas…” e atirou outro anzol, que parecia ter-lhe perfurado as pontas tridentais em seus dedos: …”mas você não acredita que Deus vai nos curar de todas as doenças?…”
Ainda com um certo compadecimento cristão, herdado do universo cultural de minha infância, sabendo que a resposta que daria em seguida faria a voz recolher a linha à carretilha, respondi sem qualquer tom de cinismo, sarcasmo ou ironia: “Pra ser sincero, sou ateu. Não acredito em Deus nem em deuses”.
“Mas você acredita em quê?”, perguntou a voz com certo embaraço e logo em seguida completando com as inevitáveis “Você sempre foi ateu?” e “Aconteceu algo em sua infância, um trauma, algo que fez perder a fé?…
Para não polemizar afirmando que ninguém nasce acreditando em nada, nem em Papai Noel, encurtei a resposta: “Não, não aconteceu nada de mais, nenhum trauma; me tornei ateu fazendo catecismo e penso que para ter boas ações morais não é preciso acreditar em deuses ou ter alguma religião”…
A voz, concluindo que os créditos de seu celular mereciam melhor destino, agradeceu a atenção e desligou, sem me dar tempo para agradecer de volta a generosidade da “Palavra” compartilhada e convidá-la para as comemorações do Primeiro de Maio, dia internacional de luta da classe trabalhadora…