Fatos irrefutáveis, embora existam os que neguem a realidade:
Somos todos educadores – Família educa, escola educa; família ensina, escola ensina; família cuida, escola cuida.
Educação, ensino e cuidados são responsabilidades a serem compartilhadas entre família, Estado e sociedade (sendo a escola pública parte do Estado). A educação escolar deve ser complementar à educação familiar – estes são princípios básicos presentes desde a Constituição Federal, passando pela LDB, Estatuto da Criança e do Adolescente e absolutamente toda legislação educacional brasileira.
Tais princípios são previstos em toda legislação educacional por um simples fato: educação, ensino e cuidados são indissociáveis, constituindo o processo de formação humana, de apropriação e construção de saberes e transmissão de conhecimentos historicamente construídos pelos seres humanos.
Pode-se ter opinião diferente e oposta. Tanto faz. Opiniões não mudam os fatos, pois não se ensina sem educar, não se educa sem cuidar. E vice-versa ad infinitum.
Opiniões são opiniões; princípios são princípios. E princípios não se negociam, já dizia Engels (sim, um dos fundadores do socialismo científico, junto com Karl Marx).
A Terra não deixará de ser redonda porque alguns, refutando irracionalmente todas as comprovações científicas, acreditem que seja plana. Não passaremos a levitar livremente no espaço porque há os que pensem que a Lei da Gravidade seja uma invenção e não um fato. Tampouco ressuscitarão os milhões de pessoas assassinadas pelo nazismo porque pervertidos negam o holocausto; nem o nazismo e o fascismo deixarão de terem sido historicamente movimentos de extrema direita a serviço do capitalismo porque idiotas afirmam que foram de esquerda, socialista ou comunista, assim como o golpe militar não deixará jamais de ter sido ditadura só porque uns sádicos romantizam a tortura.
Outro fato irrefutável: todas as mães são especiais – senão as biológicas, com certeza as que exercem papel semelhante.
Mais um fato irrefutável: independente da crença individual que cada um tenha sobre o que seja uma família; independente de alguém acreditar, por exemplo, que família seja um núcleo de pessoas constituído por pai, mãe e filh@(s), há uma diversidade de composições familiares que não se ajustam aos nossos conceitos… muito menos aos nossos possíveis preconceitos.
Já dizia Lênin (sim, o líder da Revolução Soviética), aqui livremente citado, que a realidade é mais rica do que qualquer teoria (o que nem de longe se pode interpretar como desprezo pela teoria, é bom alertar).
Todas as mães são especiais – este é o imaginário social que construímos do papel da figura materna. É assim que desejamos que seja, ainda que no campo dos sentimentos algumas mães sejam mais especiais que as outras – e ainda que a realidade nos mostre que existem mães e mães.
O filho que sou coloca no altar das especialíssimas a mãe que eu tenho. E aqui não entra uma disputa de opinião – é apenas o coração falando, sem desconsiderar que para outros filhos e outras filhas, suas mães são tão especiais quanto a minha.
Não à toa, o Papa Francisco, num dos não raros arroubos de sensatez que lhe tem sido peculiar, declarou que “não existe mãe solteira, mãe não é estado civil“. Mãe é mãe. É primeiramente uma condição biológica e é uma construção social.
Todas as mães são especiais – sejam mulheres solteiras, sejam mulheres “casadas”, sejam mães de filhos únicos, sejam mães de filhos “especiais”. Para as mães – assim também diz o nosso imaginário social – cada filho é único e é especial, independente de suas necessidades e de suas condições biológicas, físicas, cognitivas ou psicológicas.
Todavia, a opinião ou o sentimento que cada mãe possa ter a respeito de seu ou de seus filhos não mudam os fatos. Os fatos são irrefutáveis: também os filhos são diversos e diversas são as características e as necessidades. Alguns, por suas peculiaridades, para que possam ter acesso o mais pleno possível às aprendizagens que lhe são igualmente de direito e que possam se desenvolver em toda sua plenitude e potencialidade, necessitam cuidados especiais, inclusive educativos.
Mas seria possível criar uma lei que desse um status de “especiais” a algumas mães e a outras não? No terreno das possibilidades políticas, tudo é possível…
Digamos que a hipotética lei viesse a se chamar “Special Mothers” (ou “Mães Especiais”, já que estamos no Brasil), e conferisse a “prestigiosa” oportunidade de, na escola, apoiar seu filho com necessidade educacional especial na turma em que esteja matriculado; que ainda fosse de alguma forma remunerada para realizar este apoio e que (previamente ou durante?) recebesse uma certa qualificação “profissional” (para exercer uma “profissão” inexistente – a de mãe – e a qual nem mesmo os profissionais contratados para atuar nesse apoio têm garantia de recebimento externo).
Bom? Ruim? À primeira vista lhe parece encantador?
Afinal, não somos todos educadores? Afinal, educar, cuidar e ensinar não são responsabilidades que devem ser compartilhadas entre família, sociedade e Estado, devendo a educação escolar ser complementar à da família? Ademais, não seria esta uma forma de “solucionar” o grande gargalo de falta de profissionais de apoio educativo, efetivando uma forma de “parceria” direta entre escola e família?
Sim, somos todos educadores. Sim, responsabilidades devem ser compartilhadas e a educação escolar é complementar à educação da família. Sim, educar, cuidar e ensinar são indissociáveis e as parcerias entre escola e família precisam ser efetivas.
Observemos mais de perto, passemos a vista uma segunda vez…
É preciso compreender que escola e família educam, mas possuem – e precisam preservar – suas especificidades, pois têm naturezas distintas e exercem papéis distintos no processo educativo. Na educação escolar, procuramos reconhecer e valorizar os saberes das famílias, contudo, se de um lado parcerias são sempre bem-vindas e necessárias, de outro elas não podem ocorrer confundindo-se os papéis, no lugar de ou em substituição a profissionais sob pena de desqualificação do processo educativo e, consequentemente, das aprendizagens e do desenvolvimento dos próprios alunos.
Em tempos de delírios governamentais em prol do “homeschoollng” e do desmonte da educação pública, laica e gratuita em nível federal, é preciso mais do que nunca ressaltar que ter responsabilidades compartilhadas e educar de forma complementar não é o mesmo que a família exercer atribuições específicas dos profissionais da educação escolar, ou o profissional da educação escolar participar da vida familiar de um aluno.
Seja na escola, seja na família, vínculo e afetividade cumprem papel de motivação essencial para a aprendizagem e para o desenvolvimento das crianças, jovens e adultos aprendizes. No entanto, a educação escolar se diferencia da familiar pela sua intencionalidade e sistematização dos processos de aprendizagens – há sempre uma carga de emoção envolvida em todo relação educativa, mas na escola ela é balizada justamente pela intencionalidade pedagógica, planejada e definida profissionalmente, de forma mais consciente e menos intuitiva, amparada e norteada pelo projeto político-pedagógico da escola, que por sua vez sustenta princípios, concepções e valores comuns e universais que não representam necessariamente princípios, concepções e valores individuais dos sujeitos, ou de cada família.
Quanto menos se tem consciência dos processos educativos, das estratégias pedagógicas e das formas e finalidades da organização escolar, mais propensos os sujeitos ficam a se deixar levar pela emoção, podendo adotar atitudes baseadas em princípios, concepções e valores individuais conflitantes aos que norteiam a educação pública. Essa é uma das razões pelas quais todos os profissionais da educação escolar vivenciam, ainda que no âmbito da escola, processos de formação continuada (mesmo os professores, que por requisito do cargo precisam ter formação em Magistério ou em Pedagogia; mesmo os auxiliares em educação, cuidadores, monitores, estagiários de apoio à inclusão etc, que atuam sob orientação direta, supervisão e acompanhamento do professor da turma).
A emoção nem sempre é boa conselheira, podendo afetar negativamente o olhar e a conduta profissional, por isso mesmo evitamos atribuir para uma professora, ou para uma auxiliar de apoio à inclusão, uma turma em que seu próprio filho, ou até mesmo um parente, esteja matriculado.
Assim, essa mescla de dois papéis distintos (o de ser mãe e cuidadora do próprio filho na escola) pode parecer uma “solução” rápida e fácil para um problema concreto – a falta de profissionais para o apoio à inclusão -, mas, em se tratando de educação escolar, soluções aparentemente rápidas, fáceis e baratas costumam trazer mais prejuízos do que benefícios.
Fazendo um parênteses, é importante ressaltar que não somente a falta de profissionais para apoio à inclusão, como de profissionais para o serviço público em geral tende a se agravar caso não seja revertido o congelamento dos investimentos públicos por 20 anos, que foi aprovado em janeiro do ano passado pelo governo federal anterior, com voto e apoio do atual presidente, quando deputado. Tende a se agravar, ainda, com os cortes que o governo federal está fazendo nos orçamento público, em especial com os cortes de recursos para a educação. E mais: de um modo geral, as condições de vida da maior parte da população, que é pobre e trabalhadora, tende a piorar com a Reforma da Previdência, mas esse é um assunto que volto outro momento.
Fico aqui com as palavra do Mestre Miguel González Arroyo (apesar de ele se referir especificamente a docentes, sabemos bem que na ação de apoio cotidiano, auxiliares, monitores em educação, cuidadores – ou qualquer outro nome que se possa dar Brasil afora, cumprem função educativa essencial em parceria com os professores):
“Um ofício descartável?
Temos uma história e uma memória. Dominamos segredos e artes de um ofício. De um ofício descartável? Os apelos tão na moda de todos os lados, dos interesses neoliberais e também dos progressistas de pretender colocar no cerne da ação educativa e escolar a comunidade, as famílias e as organizações sociais, a sociedade difusa dos empresários, a mídia e os amigos da escola, correm o perigo de descaracterizar esse núcleo constitutivo de toda ação educativa. Correm o perigo de tirar o foco da dimensão pessoal, do diálogo e convívio de gerações, do saber-fazer, das artes dos professores (…)
Não podemos confundir e substituir a gestão participativa pelo cerne da relação educativa. A mobilização e participação das comunidades e das famílias poderia ser equacionada nas dimensões socializadoras, educativas que sem dúvida têm. Poderia ser uma oportunidade para que os educandos e educadores percebessem as proximidades entre os espaços familiares, comunitários e escolares, entre os saberes do currículo e os saberes sociais. Poderia ser uma oportunidade para que a escola se abra à cultura, à memória coletiva e à dinâmica social. Cientes, porém, de que avançar nas formas de participação da comunidade escolar e da sociedade não suprirá nunca ofício dos mestres, assim como avançar na gestão participativa dos centros de saúde não poderá dispensar nunca o trabalho artesanal e profissional dos trabalhadores da saúde”.
(Arroyo, Miguel G. Ofício de Mestre: Imagens e Auto-imagens. 2002, p.20)
A imagem em destaque é apenas para reforçar, aos “terraplanistas da Educação”, que por mais que se distorçam os fatos em nome de suas crenças, os fatos são os fatos.