Silente

hoje eu não estou para a música
tem dias que a gente só quer
o barulho dos autos que passam
do vento soprando as folhagens
e às vezes nem isso; só o silêncio

o silêncio mesmo do pensamento
o olhar fechado, quieto, no escuro
o tempo naquela cena, esquecido
o silêncio do coração pulsando
das asas da borboleta pousada

o silêncio das rimas quebradas
dos versos sem prosódias
das ondas lentas, do vídeo pausado
daquela fotografia ali na escada
o silêncio do seu silêncio

mas tudo é grito, nada é sussurro
as passadas sem pressa
e sem qualquer sincronia
das pessoas no outro lado da rua
elas não gritam, trovejam

os sorrisos efusivos
as pálpebras pesadas de sono
a planta florescendo à nossa frente
os sacos de lixo à espera da coleta
gritam, gritam, gritam, só gritam

e eu querendo o silêncio de memórias
das coisas que nunca foram, se foram
o silêncio de uma lágrima perdida
abrindo na face uma ferida de sal
que, invisível, saliente, agita – e grita.

[M.S.]


Reflexões sobre coletivismo, individualismo e alguns mitos

Educação é prática coletiva e um coletivo não é meramente uma soma de indivíduos; é um organismo que se constrói pela ação de sujeitos com suas subjetividades e que compartilham concepções e princípios comuns – sujeitos que dialogam a partir de suas individualidades, se comprometem e se responsabilizam no e pelo processo, sabendo que este é tão importante quanto o resultado, porque é daquele que se origina a boa ou má qualidade deste.

É certo que um coletivo não se constrói ao vento,  por osmose ou por geração espontânea – ele é fruto de trabalho e da ação consciente, planejada, coerente e consequente de lideranças. Neste sentido, tomando como referência um importante teórico revolucionário que dizia que a crise do movimento revolucionário é a crise da direção revolucionária, precisamos reconhecer que em certa medida as dificuldades de uma coletividade são reflexos de dificuldades da direção dessa coletividade.

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Amor

Amor é música constante
Cantada em voz miudinha
Descompasso e dissonante
A um passo que não tinha.

Só a ouve não quem a toca
Mas quem por ela é tocado
Bem no canto de tua boca
Num sorriso disfarçado.

Cavaleiro imaginário
A cavalgar um alazão
À margem esquerda do rio
Em que repousa o coração.

Está onde não se procura
De tantas faces, muitas vestes
Ora iluminada, ora escura
Se lança a céus azuis celestes.

[M.S.]

Pretexto

sem ter tido
  um sentido
além do dito
ou do escrito
compreendido
              o contexto
às vezes um texto 
é só um pretexto

nem tudo de mim
     é sobre mim
     às vezes é meio
  pelo qual semeio
            outras vezes
em si mesmo
                            é fim

    às vezes é só
       outras, sim

[M.S.]

Por que me tornei professor…

Um fantasma ronda a Europa” … 

Um fantasma ronda a Europa, o Brasil e, especialmente, as primeiras aulas de todos as disciplinas dos cursos de Magistério, dos cursos de Pedagogia, dos cursos de especializações…  Também do início dos cursos de aperfeiçoamentos pedagógicos às primeiras semanas do início na profissão e volta-e-meia quando nos deparamos com novos colegas ou, ainda, nas dinâmicas e nutrições de recepções de equipes ronda o fantasma daquela velha e eterna novidade, que é a pergunta: “Por que me tornei professor?” 

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Vênus

Para Vivi – flor de março, presente de abril

sobre o céu de Marte
brilha o Sol de março
solitário
ventos varrem as colinas
levantam a poeira
vazios de poesia

sobre o chão rubro
fantasmas rasgam fantasias
e seus uivos, tal como lobos
sob Deimos
sob Fobos
são ocos - não os ouço

distante distante e a um passo
de um sonho, de um traço
no planisfério, no espaço
onde o globo sobrevoa
e os olhos nus alcançam
no lado oposto lá está ela

ao calar a noite
ao fechar de março
a estrela da manhã estreia
no outono sua primavera

uns a chamam de Vênus
outros a chamam de deusa
pela sua força vulcânica
pela sua chama ardente
a chamamos simplesmente
                                        amor

[M.S. – Mar/2024]

Imagem em destaque: “O Nascimento de Vênus”, de Sandro Botticelli (1484-1485)

1977

sob o signo do sonho
nas bordas do firmamento
o chão a chuva a seca
lá fora ou cá dentro
      não sei
pobre terra rica
pés descalços, brasis
rubra poeira
pele em brasa

sob o fervo de fevereiro
a gélida sentença
  o desengano
impossível a existência
tão leve a criança
- coração paranapanema
mente em curto
      curta a vida
  curto o tempo
leva para casa leva ela
e tudo que ela leva
      e eleva as mãos

      mas não

sob o forno a fé
o enfrentamento
o ranger das madeiras
    das paredes
o silvo do vento ao cruzar
   das frestas

sob o sereno os poros
os porões d'outros verões
     o fogo vindouro
entre o café e o algodão
as vacas e os seus frutos
a cana e os moinhos
as mãos moídas os calos
   os prantos calados

da obstinação da mãe
da teimosia do pai
da natural tepidez
de substâncias compostas
do barro
  da carne
   da alma
    da tez
dos trinta e seis
o pulsar do filho improvável
possível se fez

[M.S. - Fev./2024]

Por Isso Agora Falo

Falo como poeta
Eu sou livre e não sabia
Mas essa inconsistência do papel
E essa minha língua vermelha, mordida
Carne, nervos e sangue - o doce aroma
Corte exposto no indicador esquerdo
Eu sou poeta e não sabia.

Eu sou poeta e não queria
Conhecer a louca esperança tonta
Que faz a escrita toda torta
O vício da rima e o vício da mina
Só, mano, é isso aí! Pra sair do contexto
Nada do que faço é certo
Eu sou o homem no deserto.

Falo com o falo
À flor da pele o hormônio
O palavrão improferível
A idade média da razão
Eu sou o fruto que sai da terra
O ofídio - tal como, frio e paciente
Eu sou poeta e não sentia.

Não sentia que era isso
Essa coisa, esse asco
Essa pedra bruta, esse fiasco
Esse profundo fundorifício
Detalhado na teta e na testa
Marca de fuzil alemão
Que eu nunca vi.

Não, menina, eu não vou fugir
Apenas quero me esconder
Desse jeito meu (seu) de ser
Da fantasia de sua boca na minha
De seus lábios carnudos, calientes,
Tangendo a fímbria do amanhecer...
É que sou poeta e não dizia.

Por isso agora falo.

.

[M.S. / Em algum momento do milênio passado]

Leituras, lembranças e esquecimentos

Por Marcelo Siqueira

Talvez nem mesmo ele recorde, mas foi meu irmão Fernando que disse, anos atrás, que eu lia sempre os mesmo livros e, dos mesmos livros, os mesmos capítulos, ou as mesmas histórias, ou os mesmos poemas (algo assim).

Até hoje não sei se ele falou por sarcasmo ou por elogio, mas  a verdade é que essa observação não me irritou nem um pouco, muito pelo contrário, fiquei demasiado admirado com seu olhar perspicaz (ainda mais porque, naquela época, achava que eu era meio invisível na família).

Na ocasião não respondi nada, porque era muitíssimo mais turrão para admitir razão nas opiniões alheias (como dizia Allan, indignado e com toda a justeza: “Marcelo, você é chucro!!!”).

Confesso que ainda tenho muito de teimoso, mas os anos de magistério me foram particularmente benéficos, pois o convívio com toda gama de pessoas, adultas e crianças, de tantas opiniões divergentes e convergentes e outras “nem tanto ao céu nem tanto ao mar“, me abriram os horizontes para novos mares, ares e territórios.

Das teimosias que ainda sustento, geralmente estão as que se referem às questões de princípios, porque ainda tenho pra mim – e talvez de forma até dogmática – que os princípios não se negociam.

Mas o meu irmão sabia exatamente o que estava dizendo: eu costumava realmente ler os mesmos livros, os mesmos capítulos, as mesmas histórias, os mesmos contos, os mesmos poemas…

Digo mais: apesar de ter feito algumas leituras variadas ao longo desses anos e constantemente agregar novas leituras ao meu repertório,   ainda costumo retornar aos mesmos livros, capítulos, textos!…

E acho que faço isso pelo prazer que me proporcionam; e faço como quem busca manter algo de essencial, de original em minha trajetória de vida, justamente para nunca esquecer das minhas raízes, para não esquecer da impagável dívida social que tenho com aqueles que fizeram e fazem parte direta ou indiretamente da minha vida, da constituição da minha identidade que vai se construindo à medida que continuo vivendo, e convivendo.

Assim, de vez em quando vou colecionando novos livros – geralmente adquiridos em sebos, não só por serem mais baratos, mas porque os livros usados têm todo um encanto que os livros novos não têm: eles passaram por outras mãos, por outras vidas, por outras vistas, por outros olhares! Ler um livro usado é compartilhar com outras pessoas de uma mesma leitura, com novas possibilidades de interpretações, é dialogar com a história contida no livro, e é dialogar com a história do livro, desse objeto impresso folheado, rabiscado, marcado…

Por essas e por outras que, apesar de novos livros, volto às mesmas leituras. E talvez por isso algumas pessoas pensam que eu tenho uma memória daquelas! Pura ilusão…

Minha memória me trai constantemente. Diariamente procuro pelas chaves que acabei de pegar para sair de casa, ou da escola (isso quando não as esqueço trancadas dentro da diretoria, e tenho de reabrir cadeados, portões, portas… e fechar tudo novamente).

Pra mim, o alarme da moto deveria ter um localizador eletrônico, para que eu pudesse facilmente encontrá-lo, por ter esquecido de guardá-lo devidamente (mas daí seria capaz que eu tivesse de ter um localizador para o localizador do alarme…).

Nomes então!… Sinto muito, não é por descaso com as pessoas que conheço, mas levo tempos para decorar um nome, e segundos para esquecê-lo!

O curioso é que para sobrenomes eu não tenho a mesma fraqueza mnemônica: entre tantos outros, lembro até hoje do sobrenome de uma professora da segunda série, que me “ensinou” a fazer os espaçamentos dos parágrafos, utilizando o inusitado recurso didático do cocorote no meu cocoruto – desculpe a aliteração! Eu traduzo: cascudo na cabeça -. O sobrenome dela era Clock.

É um paradoxo, mas apesar de ser péssimo para descrever pessoas, as fisionomias eu guardo que é uma beleza: o problema é que eu encontro uma pessoa conhecida, aí eu olho pra ela, sei que a conheço, não lembro o nome nem lugar, e fico sem graça de perguntar: “Desculpe, de onde nos conhecemos mesmo?”

Vai que ela responde: “Nós trabalhamos na mesma escola por 12 anos – a mesma que eu e você ainda trabalha”!

Claro que estou exagerando, mas do jeito que a coisa tá indo, é sempre um risco, né…

Semana passada, esqueci durante um dia inteiro a senha de um e-mail que acesso diariamente, e incrivelmente só lembrei da senha quando deixei de me preocupar em lembrá-la.

Outra coisa: tem gente que pensa que é lenda quando conto que, uma vez, só fui lembrar que era meu aniversário no final da noite, quando encontrei com meus familiares e eles me deram os parabéns.

Quem não gosta de mim pode até maldosamente insinuar:  “Ele é tão chato  que ninguém deu os parabéns antes”. Eu não me importo se falarem isso, porque desconhecem o contexto. O importante mesmo é que essa história eu vou usar como álibi se um dia (que nunca vai acontecer, que fique bem claro!) esquecer o aniversário de casamento: “Olha, amor, me perdoa, mas se eu já cheguei até a esquecer  do meu aniversário…”

Algumas pessoas brincam (ou advertem): Menino, você é muito novo para esquecer tantas coisas!… Eu também acho, mas esqueço; e só não fico (muito) estarrecido com isso porque o Rubem Alves disse que o esquecimento é saudável, isso ainda porque – também não recordo onde li, mas li! – ao contrário do que pensavam os médicos, cientistas e afins, a função da memória não é guardar, mas sim esquecer, porque se o cérebro guardasse todas as informações as quais somos expostos cotidianamente, entraríamos em pane rapidinho e, no mínimo, ficaríamos loucos.